Gostaria de compartilhar neste dia tão importante um entrelaçamento de palavras e afetos feito junto à uma amiga querida.
Sempre no dia “18 de Maio – Dia Nacional da Luta Antimanicomial” estou envolvida em manifestações poéticas e políticas, saio às ruas para manifestar alegremente um trabalho coletivo tecido dia após dia das diferentes formas de cuidar afetivamente e em liberdade. Nesses últimos anos, ocupei as praças, as ruas, as grandes avenidas, os serviços, agenciando encontros e idas aos atos. Aprendi com a Luta Antimanicomial, principalmente com a ocupação das ruas e nos atos, que a luta é mais possível (e mais potente também) ao lado da alegria.
Neste ano, estou mais recolhida, fazendo um trabalho de cuidar de mim, da minha saúde mental, dos meus processos de cuidado, resquícios desses últimos anos de desgoverno e destruição. Durante esses 10 anos de SUS e de Saúde Mental, ajudei a juntar tantos cacos, fiquei ao lado nos momentos mais difíceis, guardei pinturas jogadas fora, documentos e papéis rasgados, ajudando a olhar belezas e processos mesmo nos estilhaços da vida, abracei e acolhi com o corpo sempre presente. Escrevi, ouvi e li narrativas de vida – das histórias mais difíceis às mais belas.
Hoje peço licença para compartilhar uma carta que escrevi com a Ana*, uma amiga e colega de profissão, com quem descobri os encantamentos iniciais da Terapia Ocupacional. Parte destes encantamentos foi descobrir juntas quem foi Nise da Silveira, quais foram suas contribuições para a profissão e para a saúde mental. Apresentamos essa carta na aula que fizemos em conjunto com alunes do curso de Terapia Ocupacional da Unifesp (campus baixada santista) no dia 8/05/2023, chamada “Fabulações com Nise da Silveira e Dona Ivone Lara”.
Querida Nise,
Você é uma mulher cujos retratos divulgados geralmente são de alguém velha, coque grisalho alto, óculos em armação de acetato espessa….a fala transpassa as mãos apontando o céu e atinge os olhos dos que estão perto de maneira enfeitiçada: um corpo velho e forte, tônico, filetes de músculos que sustentam quem se move, quem gesticula, quem vive de pôr as mãos nos outros, olhar a matéria de que é feita, fazer o mundo junto dos outros, apresentar os pincéis, tintas, telas…rabiscar e fabular mundos possíveis junto de quem o mundo não ouviu a voz, não suportou a presença, abafou a existência e o devir.
Você sempre esteve à frente de seu tempo.
Nordestina arretada.
Você disse não a dar eletrochoques nos pacientes e nos mostrou a potência de uma presença afetiva no cuidado das pessoas.
Você denunciava cotidianamente o horror dos hospitais psiquiátricos e a partir de seus gestos e suas forças evocou possibilidades de cuidado potentes.
Você nos deu a semente da nossa profissão e nos ensina a seguir seus passos. Nos convoca a ser terapeutas ocupacionais menos retóricas e acreditar na potência das atividades expressivas e artísticas, como formas de cuidado, cura, desvio, criadoras de lugares e subjetividades.
Criava cenários vivos e cheios de movimento, dentro do horror do hospital. Não é à toa que os pacientes se tornaram grandes artistas, pois você oferecia sua presença, sua atenção e seu afeto generosamente…
Querida Nise,
gostaria de ter parte da força que você tem. Para dizer não em alto e bom tom. Não ser vencida pelo cansaço. Para insistir no impossível, quando você convida os médicos mais céticos a tomarem café no seu ateliê dentro do hospital.
Queria dizer que eu tenho um carinho grande por Adelina e Fernando Diniz, os artistas do Museu de Imagens do Inconsciente. Como se eu os tivesse conhecido. Pois você nos apresentou.
Fico cativada observando como você os olha, como driblou todas dificuldades e acreditou profundamente na capacidade de curar as feridas violentas dessas histórias. Como conduziu as expressões dos pacientes e levou-as para ganhar mundos.
Adelina desenhava flores em seus retratos – Ainda que tenha sofrido intensamente dentro e fora do hospital, Adelina pintou pétalas e flores, delicadas e suaves, mulheres-flores.
Como produzir um corpo-suavidade diante do brutal da vida?
Você era cangaceira e rebelde.
Com sua força imensurável. Queria te dar um abraço e sentir essa força de perto. Quando você diz que é uma cidadã do mundo e que vive isso visceralmente, me esclarece muito como você viveu…
Só quem faz das amarras da prisão (a sua e a de seus pacientes) asas para liberdade, sabe viver o inteiro de uma vida, agindo a partir das visceras (como você mesma falou) e atravessando abismos.
A força do gesto, sutil porém firme, virou um carimbo-assinatura forjado no peito de cada um que alguma proximidade tem com você, Nise.
As tintas, os riscos, as palavras, os animais, o mundo vivido em imagens… tudo isso você nos ensinou como faz uma vizinhança possível, viva e porosa. Você que ensinou a não deixar o contato empedrado.
Essa expressão sua, a tal “terapêutica ocupacional” revolucionou o entendimento da construção de uma vinculação terapêutica por meio de se experimentar fazer algo junto de alguém.
Vivemos de ser e praticar essas propostas para as quais você nos convidou em um caminho inevitável da vida digna de ser vivida.
Com amor,
Ana e Glenda.
*Ana Carolina Costa Savani