Um Ensaio sobre Necropolítica e Suicídio

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Um Ensaio sobre Necropolítica e Suicídio 

Neste 10 de Setembro – Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio é válido ressaltar que o interesse pela temática data da Grécia antiga, atravessando séculos com todo tipo de representação social, como punição ou castigo frente a um crime, inclusive com direito ao enforcamento do cadáver as premissas místicas e religiosas ainda em curso como a afirmação de que os suicidas não tem lugar no reino dos céus.

Todavia, foi Émile Durkheim, considerado como o pai da Sociologia, a escrever de forma primeva em 1897 um tratado sobre o assunto chamado “O Suicídio”, partindo do pressuposto de que ” Cada sociedade está predisposta a fornecer um contingente determinado de mortos voluntários”.

Na história recente, tendo em vista o crescimento dos índices de suicídio no mundo, foi criado em 2003, pela Associação Internacional de Prevenção ao Suicídio, com o apoio da Organização Mundial de Saúde, o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio, demarcado anualmente desde então em 10 de Setembro.

Somente em 2015, foi criada no Brasil, a campanha Setembro Amarelo, fazendo alusão ao suicídio de um jovem norte americano, ocorrido, em seu veículo de igual cor em 1994, ou seja, 11 anos depois do levante dos Estados Unidos. Você poderia perguntar: Como ficou esse fenômeno no Brasil até 2015? Totalmente invisível! Nem ao menos, o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio era lembrado em detrimento de centenas de inomináveis vidas perdidas.

Trazer a tona essa pauta, é estar na contra mão de um modelo estético, já comprovadamente de alto custo e baixo impacto e que compõe o Calendário Arco Íris de eventos em saúde coletiva, abarcando inclusive outras políticas públicas. São tantas cores, que faltam meses no ano para contemplar essa miscelânea confusa de temas tão importantes e perdidos no tempo, pautados de forma efêmera em um único mês, condenadas ao esquecimento com o passar dos meses nesse caleidoscópio, onde somos todos capturados, sem nenhuma crítica pelo mercado da morte, replicando um certo campanhismo típico de um Brasil de outrora e tão atual quanto as eleições periódicas, quando os candidatos visitam as casas dos eleitores para depois trata-los com todo prejuízo de memória.

Palavras como: “você não está sozinho”; Falar é a melhor saída”; “o suicida não quer se matar, ele quer matar a sua dor”, são repetidas como mantras em peças publicitárias, decoradas com adornos de balões, camisas e material gráfico, afinal já há um nicho para abastecer a alienação do povo, obliterada em uma formação discursiva de que é importante conscientizar a sociedade sobre a empatia com o outro, porém quando Outubro chegar até às camisas mudam de cor, como as folhas caem na nova estação e a pulsão de morte segue seu trabalho incólume.

Imaginem como seria diferente se a campanha fosse atemporal, atendendo pela convocação ao trabalho diário e cotidiano, POIS A DOR, NÃO TEM MÊS E NEM COR!

E se ainda tem dúvidas, pergunte para uma pessoa com história de tentativas de suicídio sobre sua percepção sobre esse mês. Ela certamente lhe dirá que as mesmas pessoas que parecem mais humanas nas redes sociais, são as mesmas que um mês depois, serão o júri de um tribunal a serviço de uma sociedade preconceituosa, higienista e do espetáculo e ainda que você use todas as suas forças com seu super anel amarelo, o máximo que conseguimos é uma platéia para um circo digno da obra de Maquiavel.

O que realmente salva vidas não são balões, uniformes da seleção, matéria gráfico ou palestras tecnicistas. Precisamos de pessoas para ouvir em tempos do narcisismo da fala. O que pode salvar vidas? Seres humanos, usando todos os dias o recurso mais importante: O afeto!

Para isso, qualquer abordagem moral ou religiosa pode ser trágica, pois o que mais importa é estar de coração aberto para quem precisa. Colocar nossos preceitos morais no meio da relação, principalmente que se diz terapêutica, pode representar uma condenação, pois o suicida não precisa de seu julgamento, mas sim de seu acolhimento e abraço.

Mas porque fomos parar nesse carnaval mórbido e midiático?

Tudo que foi escrito até aqui é o prólogo para descermos um degrau a mais naquilo que não queremos ver. Para tanto apresentamos esse texto que chamamos de Ensaio sobre Necropolítica e Suicídio.

Para Bertoldi Brecht:

Há muitas maneiras de matar uma pessoa.Cravando um punhal, tirando o pão, não tratando a sua doença, condenando a miséria,fazendo trabalhar até arrebentar, impelindo ao suicídio, enviando para a guerra (…)”

Para tanto, precisamos abordar as formas de controle e poder em que estamos imersos, sem ao menos perceber, ou ter consciência, até porque “o eu não é senhor em sua morada” (Freud, 1917).

Para o filósofo, psicólogo e historiador francês Michel Foucault e o filósofo italiano Giorgio Agamben, Biopolítica se refere ao modo com que as autoridades lidam com a questão da vida e morte dos indivíduos em uma sociedade, sendo estes os responsáveis pela organização social, saúde, educação, infraestrutura, natalidade da população, violência, e questões sociais em geral que afetarão diretamente a comunidade.

Enquanto o Biopoder de onde deriva a biopolítica eclode de toda essa reflexão sobre os sistemas totalitários, observou que esses sistemas de biopoder se utilizavam do preconceito para exterminar minorias de forma a conscientizar para a sobrevivência de um dado grupo, sendo necessário que certas populações sejam contidas (na formação do que depois viria a ser chamado de “lixo humano”).

Dessa feita, explica-se como o autor chegou ao conceito de biopolítica e biopoder, através da percepção do poder disciplinador e normatizador, que vinha a administrar a vida e o corpo da população; assim como os dispositivos da sexualidade, todos esses dispositivos procuravam normatizar a conduta da espécie.

Com base nessas ponderações, no mundo recente, do final da segunda década dos anos de 2000, surgem teorias sobre a vida e a morte, necessidade ou produto talvez daquilo que o filósofo camaronês Achille Mbembe (2018), ainda no seu prefácio de “Políticas da Inimizade,definiu como sendo o sacramento do mundo neste século,a guerra -que sob a forma da conquista, do terror,tem despertado nas democracias liberais o exercício de uma ditadura contra si e contra os seus inimigos.

Elemento de reviravolta, segundo Mbembe,hoje é colocada às sociedades ocidentais o que até bem pouco tempo somente acometiam sociedades não ocidentais. A guerra, se instala, assim, como fim e como necessidade, como o veneno e o antídoto de nossa época, nos arrastando para “sociedades da inimizade”, como durante o colonialismo e aqui não haverá tempo para destacar a obra de Fanon, mas apenas destacar o postulado do autor sobre a importância da pré condição de conhecer uma sociedade a partir de seu sistema de saúde mental.

É condição sine qua non que toda relação é uma relação de poder, onde o opressor opera com violência sobre seu objeto de gozo. Embora o destino dos dissidentes sociais já seja bem conhecido, pois habitam as margens do que se chama de forma demagógica de normalidade.

Para ele a necropolítica é o poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Com base no biopoder e em suas tecnologias de controlar populações, o “deixar morrer” se torna aceitável. Mas não aceitável a todos os corpos. O corpo ”matável” é aquele que está em risco de morte a todo instante devido ao parâmetro definidor primordial da raça e aqui circunstanciar as demais categorias sociais.

Mbembe explica que, com esse termo, sua proposta era demonstrar as várias formas pelos quais, no mundo contemporâneo, existem estruturas com o objetivo de provocar a destruição de alguns grupos. Essas estruturas são formas contemporâneas de vida, sujeitas ao poder da morte e seus respectivos “mundos de morte” – formas de existência social nas quais vastas populações são submetidas às condições de vida que os conferem um status de “mortos-vivos”.

O interesse humano pelo mórbido já era observado na sociedades mais antigas como as aglomerações para testemunhar enforcamentos, colocar em situação de feira os insurgentes no direito romano, dando inclusive o ao povo o poder da decisão de vida e morte de outrem, dada a natureza difusa dos conceitos acima apresentados.

Esse comportamento de massa seria então diferente nos dias atuais? O que dizer das pessoas gritando ao pretenso suicida para não demorar a pular do edifício? Das aglomerações perto ao cadáver caído no chão após acidentes ou execuções, tudo filmado, compartilhado por uma multidão de expectadores que nutrem sua perversão com o aniquilamento do estorvo.

Se a necropolítica é a chancela sobre a vida e a morte de negros, pobres e periféricos, também é a espada que separa os corpos dóceis daqueles que não se dobram. Daqueles que não se encaixam no status quo. Aqui residem ricos e pobres de afeto e fora da ordem social, marginalizados pela patologização da vida e rotulados com um CID. Desempregados, pessoas em situação de rua, usuários de álcool e outras drogas, profissionais do sexo, pessoas fora da heteronormatividade, loucos de todo gênero e outros que ousam pensar diferente são hoje o que a sociedade já decretou sua sentença, empurrando essas massas anualmente para o suicídio, onde a mesma sociedade se apazigua pela isenção de culpa, romantizando o trágico com singelas postagens.

E o que dizer dos serviços de saúde mental, esquecidos, vilipendiados, usurpados na história recente pelos neo-hospícios, sub financiados e sucateados, precarizados por um orçamento pífio e por toda improbidade e psicopatia institucional e sem alternativas, tal como aquele se auto flagela e que mergulha para morte, já tem hoje literalmente a corda no pescoço e ainda assim é coagido a se juntar ao delírio amarelo.

É de uma natureza cínica ocultar a realidade com um espetáculo amarelo. Fazer de conta que estamos fazendo e a sociedade fazer de conta que é sensível, enquanto as pessoas se cortam, se rasgam e se matam o ano inteiro.

Uma campanha como essa, sazonal e estanque, não somente é uma medida insanitária, como também cheia de obscenidades, tamanha a quantidade de recursos utilizados frente a miséria e a falta de medicamentos e terapias que realmente podem reduzir os índices de suicídio no país.

O Brasil é signatário da OMS para redução da morbimortalidade de lesões auto provocadas e suicídio e ainda assim com o Setembro Amarelo tudo que conseguiu foi ver aumentar o número de mortos voluntários de 11 para 13 mil mortos por ano.

Viver nesse planeta colorido é não somente uma forma de violência simbólica, mas igualmente uma distopia digna dos clássicos de Eric Arthur Blair. É como dizia Renato Russo: “Acreditar que o mundo é perfeito e que todas as pessoas são felizes”

A sociedade, através do soberano, decide quem vive e quem morre no Brasil em 2023. Mata pela fome, pois são mais de 29 milhões de pessoas vivendo a margem da linha da pobreza, juntando comida do lixo que vem do luxo. Um exército de pessoas desamparadas psiquicamente, que encontram no suicidio a única forma de fugir de seu algoz: eu, você e todos nós fazendo selfie para subsidiar nossas mídias sociais e que nada mais são do que o espelho de nosso sublime narcisismo.

São com certeza palavras duras que revelam o negativo de um recorte amarelo de um tecido chamado Brasil. Então, podemos afirmar que o suicídio em nosso país é um herdeiro da necropolítica e de nossa psicopatologia da vida cotidiana.

 Entretanto, subversivo, trabalho pela desalienação das pessoas, em um modelo de sociedade de repetição, sem nenhuma possibilidade crítica debaixo do nosso nariz.

De certo nosso velho Freud, esteve sempre certo, quando em seu texto “Reflexões sobre tempos de guerra e morte” nos afirma: ” Se queres viver, prepara-te para a morte” (1915)

Se segundo ele o objetivo da homem é a morte, porque ao invés de adia- lá, criamos cada vez mais tecnologias para abrevia-la?

Devo contar por fim com a reflexão de Melanie Klein: “Quem come do fruto do conhecimento, é sempre expulso de algum paraíso”

Já fui de vários!

Paulo Peixoto Filho