Um reservatório de possíveis em nós

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Um reservatório de possíveis em nós

laboratoriodesensibilidades – 2016

Bem, a questão da subjetividade e da “alma” não é fácil. Apresento rapidinho e grosso modo uma noção de produção de subjetividade distinta dessa idéia, tanto de Descartes quanto de Hegel que têm essa matriz de uma certa unidade, de uma certa identidade, de um certo contorno, uma certa interioridade, em contraposição a esse modelo, tento mostrar que a idéia de subjetividade é aberta, é um todo aberto, ela não está calcada neste modelo de identidade, de interioridade, de uma delimitação, ela é aberta a tudo que é exterior, ela não tem um centro, ela não tem uma identidade, ela está mais disponível para as forças que a atravessam e a habitam, ou seja, a subjetividade, por definição, está mais aberta aos devires que a tomam, mais aberta a uma multiplicidade que a habitam, mais aberta aos atravessamentos e as multiplicidades que empurram para inúmeros lados. Eu vou dar um exemplo, não é um exemplo concreto de subjetividade, mas é como pensar a subjetividade mais à luz da química quântica. Tem um autor chamado Gilbert Simondon, olha só, o Simondon diz uma coisa, ele diz o seguinte, o indivíduo não existe enquanto tal, o indivíduo que cada um de nós é, é o resultado precário, provisório de um processo em curso, processo esse que também quero chamar de processo de individuação. Então, a partir do que acontece o processo de individuação? A partir de um campo, é nesse campo que se dá um processo de individuação, o campo precede o indivíduo, é diferente do Descartes dizendo que tudo começa com o eu. Aqui tudo começa com o campo, onde começa com o processo de individuação, cujo resultado é o eu, mas esse eu não é uma identidade fixa, ele é um processo em curso. O que é esse campo? O campo é um campo de forças. Então eu, esse campo de forças tem uma multiplicidade de partículas, vetores, singularidades, coisas concretas e menos concretas, mas impalpáveis, invisíveis, muitas coisas tem num campo de forças; algumas a gente vê, outras a gente sente, outras nos afetam de uma maneira que a gente nem sabe. Então nesse campo de forças se dão processos de individuação, por exemplo, eu acabo contraindo em mim um monte de partículas desse campo; olha só, quem sou eu? Eu sou uma contração na individuação desse campo de onde eu provenho, um campo físico, um campo biológico, um campo psicossocial, etc. Eu dou a impressão para vocês que eu sou acabado, que eu sou um ser acabado, prontinho, e, no entanto o tempo todo me compondo com todos os elementos do campo que vão me realimentando, me reabastecendo, me modificando, me esgarçando, me transformando. Então eu trago comigo esse campo inteiro como se eu carregasse comigo uma placenta, cada indivíduo carrega uma placenta, mas a placenta não é da mãe, é do campo, e esse campo reabastece esse processo de indivuduação que nunca se acaba, é como se eu em carregando esse campo comigo eu tivesse uma à disposição o tempo todo muitos elementos de renovação interior. Imaginem eu de uma placenta e eu o tempo todo vou me renovando a partir dos elementos dessa placenta, e essa placenta é enorme, é um campo de forças, não está delimitado no espaço, nem no tempo é um campo de virtualidades reais que podem se tornar atuais. Então, talvez a gente pudesse definir uma subjetividade a partir daí, esses dois pólos, o primeiro é o indivíduo que nunca é acabado, que sempre está num processo de individuação e nesse campo pré-individual, pré-pessoal de onde o indivíduo provém então o indivíduo seria essas duas coisas, não só o indivíduo, mas é o indivíduo em processo de individuação e o campo. Quer dizer, o campo não está fora do indivíduo, não está só fora, o indivíduo carrega esse campo em si mesmo como uma espécie de reservatório para configurações futuras, como se cada um de nós carregasse o seu campo como um reservatório de renovação o tempo todo. O Simondon deu a esse reservatório, a esse campo, a essa indeterminação, ele deu um nome pré-socrático, que é apeiron. Apeiron em grego quer dizer o ilimitado. É no mínimo curioso que a gente tenha para definir subjetividade, que ao invés da gente recorrer a noção acabada de indivíduo, que é justamente limitado, a gente inclua nessa definição o ilimitado, já o limitado que a gente põe nessa definição do indivíduo é alguma coisa em curso, então não é tão limitado assim, é um limitado aberto, e a gente acrescenta na definição o ilimitado, ou seja, esse campo, essa placenta funcionando como um reservatório para as constantes reconfigurações. Essa placenta ela é coletiva. Ela é pré-pessoal e transpessoal, ela é muito menos do que uma pessoa e muito mais do que uma pessoa. O campo de força é do minúsculo, microscópico, molecular, até o cósmico. É, isso descentra do próprio sujeito, porque o Hegel no século XVIII recentra em torno de uma identidade que por mais que ela seja contraditória ela sustenta a contradição (olha o problema da dialética!), mas ela sustenta a partir de um eixo que funciona com um eu, como um indivíduo, como uma redoma, e aqui eu estou tentando mostrar um modelo completamente aberto à exterioridade e que não precisa recentrar toda essa exterioridade em torno de um centro, então esse ilimitado, esse campo, esse reservatório ele descentra o sujeito, ele funciona como um pólo de descentramento, é como se o sujeito estivesse mais nesse reservatório do que no que ele já tem acabado porque é desse reservatório que lhe vem tudo o que de novo lhe acontece e para onde ele vai, todas as formas novas que ele vai tomar vem desse reservatório, então onde está o sujeito, está na forma que ele tem agora e tem tudo que abastece a ele para novas reconfigurações, então é óbvio que aí a forma atual dele é apenas, eu não diria um detalhe, mas é um pedaço pequeno, não é o que recentra tudo. Esse reservatório me abastece o tempo todo de novos possíveis, novas possibilidades. Tem uma idéia de sujeito e de “alma” que pensa dicotomicamente o externo, o eu e o mundo, a realidade psíquica, etc. Se você começa a pensar dicotomicamente como Platão, Descartes e Hegel aí vem toda a dificuldade de fazer a ponte. Alguma coisa não encaixa porque você já cortou uma operação, você cortou a placenta. A idéia do sujeito tradicional, ela já é constituída num plano de fundo dicotômico externo e interno, individual, coletivo, privado, social e outras tantas dicotomias.Eu diria que esse ápeiron, esse ilimitado, essa indeterminação, esse reservatório de possíveis que nós carregamos o tempo todo é como uma reserva natural de biodiversidade que a gente carrega o tempo todo.