Justiçar e Punir

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Um exercício de Pirataria Filosófica.

Nosso código penal é baseado na presunção de que exista o livre arbítrio. É uma tese tão improvável quanto a de periculosidade. Ela nega a solidariedade fundamental que nos une, ao afirmar que apesar dos pesares, em qualquer circunstância uma mesma e única razão é soberana. Mas isso, simplesmente não corresponde ao real vivenciado. Não vivemos nossa vida de acordo com “a” lógica aristotélica. Ou então, de modo que a razão possa dar curso a realização de qualquer desígnio que desejarmos. Não porque não sejamos razoáveis, ou devido a uma perversão diabólica que subverta a ordem implícita na criação divina.

Este mês me deliciei ao ouvir uma menção ao conceito de lógica paraconsistente, que é da matemática, num contexto de investigação e reelaboração da subjetividade transtornada. Alunos do curso de formação de juízes do nosso estado reuniram-se para ouvir uma palestra sobre a experiência do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental (PAI-PJ) de Minas Gerais. Ao ouvir Fernanda Otoni narrando a experiência nos tons íntimos de um relato de caso, percebi um silencio, entre a perplexidade, a indiferença e algum tom de reverência. Falar da inter-determinação a uma plateia que está a aprender que o silêncio, o desfecho e o valor da existência são delimitados pela força de uma sentença, exige coragem.

A responsabilidade, se for para existir, estará associada ao gesto, assim como a queda é parte do salto. A determinação de uma retribuição na forma de pena, implica em uma negação do mal intrínseco à maldade. No ritual, encenado no judiciário, é necessário que exista uma culpa, e não responsabilidade. A diferença é que a responsabilidade fundamenta-se na consequência direta do que acontece conosco. E não podemos fugir dessa responsabilidade. A culpa pressupõe que pode haver um benefício inerente ao mal. Uma desordem absurda que a pena sanaria: O mal resultando no bem, na forma de uma trapaça.

Ao afirmar que a loucura é uma situação que se constituí como resposta as peculiaridades de uma situação específica e que a segregação do louco infrator é prescindível, Fernanda ameaçou o equilíbrio de placas tectônicas conceituais. O fundamento da aplicação da justiça é que a escolha consciente seja a causa última e suficiente, para a determinação do ato criminoso. Mas não é.

O ato transtornado é um problema. Ele é o cerne dos mais significativos atos humanos, como pedir alguém em casamento, ceder ao impulso sexual e fazer amor num lugar insólito ou com alguém desconhecido. Pode ser amoral, imoral, ilícito, antiético ou criminoso. Pode ser efeito da paixão, de uma razão insondável ou ser a expressão do sentido da vida. Depende do contexto.

Na lógica aristotélica e na moral platônico-cristã o ato transtornado não tem lugar. Ou, de outra forma: Tem o lugar do erro, que é o avesso do acerto, do bem que não pode ser nada além da outra face do mal. No entanto, na realidade a loucura é uma regra sem normas, uma condição que nos acompanha como sombra. Ninguém tem certeza de que a sombra não venha a tomar o corpo e dirigir seus atos em algum momento ou circunstância. Mais ainda, ninguém sabe em que formas ela já não é o leme submerso que resiste ao timão de nossa vontade.

A justiça é fundamentalmente a noção de que, as lógicas, estarão hierarquizadas adequadamente. Umas se submetendo as outras em infinitos degraus, sendo que reine absoluta “a” razão. E que a ela sejam rendidas as devidas adorações e sacrifícios.

Podemos escrever muitas normas e tratados, podemos legislar e regular toda as esferas das ações humanas. Ainda que um ser integralmente submetido a ordem primeira, nos pareça uma aberração, nos confortamos com a alucinação confortável de como só há uma morte, também só há uma razão.

Felizmente não é assim. Há uma profusão de lógicas. Nossa existência é um peregrinar constante por entre todas as províncias de linguagem e de sentido. Sem nenhum pudor podemos nos servir de qualquer razão que nos convenha. Porém, não sem custo. Cada estado que nos toma, cada encadeamento, neurótico ou psicótico, imprime suas marcas em nosso ser.

Não podemos nos livrar dos nossos atos, da mesma forma que não podemos determiná-los. Vibramos solidariamente com as linhas de força que nos invadem. Podemos derivar de uma posição para outra, de acordo com limites intransponíveis.

Na prática tudo o que acabamos de fazer nos parece um destino prescrito desde sempre. E tememos o que vamos fazer (como se o abismo viesse se solidificar de forma imprevisível sob nossos pés) a cada novo instante que chega. Nosso mal estar existencial parece advir desse vazio dos instantes que se foram e dos que virão. Tudo que há, está neles, nesses instantes inapreensíveis sempre no passado, ou no futuro. Nunca agora. Sempre agora.

Na prática racionalizamos que, se o crime nos faz bem, nos aufere uma vantagem, ofendemos a justiça e precisamos oferecer, ou pagar, uma retribuição. Mas quando o crime se instaura como um incidente irracional, quando o prêmio do fruto proibido é o próprio castigo? Dizer o que do crime que é escandalosamente um atentado a si mesmo? Quando a vítima é o filho, a mãe o irmão ou o estranho colhido ao acaso, como estabelecer uma retribuição ao que não deu causa a si mesmo? Como parar um carro sem freios?

Ao louco em conflito com a lei não se pode atribuir uma pena equitativa. A balança da justiça não pode equilibrar-se. A punição é o crime. Assim, optamos por negar-lhe a condição humana. Se ele não pode ser árbitro de suas ações, digamos que ele é presumidamente perigoso, presumidamente inimputável e por fim, destituído de responsabilidade.

A medida é destiná-lo a cumprir, uma “medida de segurança”. Será tratado a despeito de sua vontade, no interesse do bem comum até que melhore, leve o tempo que levar, até que morra ou que deixe de ser presumivelmente perigoso e inimputável. Ainda assim, ele é responsável. Pois para seguir vivendo é necessário assumir a responsabilidade, exatamente o oposto de ser “livrado” dela.