Turbulências

13 votos

 Estava  voltando de Brasília. Sempre saio contente de Brasília, uma cidade que na minha opinião foi feita para se admirar…verde se misturando ao cinza do concreto, pedras lapidadas em  cimento que parecem desafiar a lei da gravidade como os anjos suspensos da catedral, curvas, retas, olhares que transplantam a utopia da iris de nossos olhos ao infinito de Niemeyer.

Mas para mim o encanto passa logo. Existe algo de opressivo no ar, como se os prédios desabassem em nossos cérebros…um cheiro de dinheiro e sangue atravessa as vias expressas e descansa nas esteiras do congresso…tudo com um toque de filme de ficção científica com pouco orçamento. Sou simplório, preciso das esquinas, das prostitutas encostadas nos postes, dos vendedores de quinquilharias nos sinais, da dessimetria absoluta de estilos. O padrão sempre me assusta e Brasília é o atestado de um sonho em que acordamos endividados quase diante do orgasmo.

Para completar,o aeroporto, um corredor onde seres impacientes desfilam de um ao outro portão de embarque em busca de um artesanato que nunca esteva nas mãos de artesão algum. E quando esfria, o vento que passou pela cidade se esgueira por aquele maldito corredor  fazendo gelar a alma. Mas nada que uma sopa,  descongelada e aquecida pela milésima vez, não possa minimizar.

 

Tudo seguia a rotina de sempre. Até o vôo da mesma empresa que encurtou o tapete vermelho para reduzir os custos. Sanduiche frio, cerveja quente, poltronas estreitas, tudo oferecido com a cortesia e o desconforto de sempre. Mas algo diferente nos esperava nesse vôo que nos levava embora da mesmice insuportável de Brasília. Uma turbulência especial fez o avião chacoalhar e perder a altitude quatro vezes no espaço interminável de 20 segundos.

 

Faltava ainda mais de uma hora para chegar a Fortaleza. Mas o vôo demorou mil anos. Descobri que não sentia medo da morte mas sim de morrer. A morte é um problema tão nosso, tão complexo, tão inidizíivel e ao mesmo tempo tão ordinário e singelo. Lembrei-me imediatamente da letra de uma música de Gilberto Gil que um tempo atrás a grande amiga Jacqueline enviou como comentário a um dos meus posts tanáticos: 

 

não tenho medo da morte
mas sim medo de morrer
qual seria a diferença
você há de perguntar
é que a morte já é depois
que eu deixar de respirar
morrer ainda é aqui
na vida, no sol, no ar
ainda pode haver dor 
ou vontade de mijar

 

E lá estava eu no avião, com direito inclusive a vontade de mijar como na música. Antevi minha morte e todo o sofrimento decorrente disso, não meu provavelmente pois tudo seria muito rápido mas daqueles que ficariam para trás. O  que ainda poderia ser feito em tempo tão curto? Um abraço…um afago…um apertar de mãos….uma oração, um beijo roubado?  O que é afinal essa passagem que nos faz levitar sobre a vida que se deixa para trás? E o avião seguia subindo…seguia caindo…e Gil ainda martelando na minha cabeça:

a morte já é depois
já não haverá ninguém
como eu aqui agora
pensando sobre o além
já não haverá o além 
o além já será então
não terei pé nem cabeça
nem figado, nem pulmão
como poderei ter medo
se não terei coração?

 

Talvez inadvertidamente, Gil recitava Platão…um Platão em poesia, pois a morte não deve ser outra coisa se não duas possibilidades…um reencontro com todos que já se foram, um reeeditar de lembranças que ganharam vida na alma liberta do corpo que agora se acha solta de todas as amarras e pode conhecer tudo. Ou, finalmente, o silêncio de tudo, que nos livra da dor, da ansiedade e do tormento de ficar imaginado a todo tempo o tempo que vai passar. Ah, se não tivermos coração…então…não teremos mais medo.

não tenho medo da morte
mas medo de morrer, sim
a morte e depois de mim
mas quem vai morrer sou eu
o derradeiro ato meu
e eu terei de estar presente
assim como um presidente
dando posse ao sucessor
terei que morrer vivendo
sabendo que já me vou

 

Um presidente presidindo a própria morte…não tinha como escapar  daquela maldita turbulência que me dizia naqueles derradeiros segundos tudo aquilo que eu ainda não tinha sido. Era essa a sensação…um saber de tudo o que não sabia e que era importante ter sabido, vivendo e morrendo, me vendo nos quadros que não pintei, nas lutas que não travei, nos mares não navegados.

então nesse instante sim
sofrerei quem sabe um choque
um piripaque, ou um baque
um calafrio ou um toque
coisas naturais da vida
como comer, caminhar
morrer de morte matada
morrer de morte morrida
quem sabe eu sinta saudade
como em qualquer despedida.

 

Ufa! Quem se despediu foi a turbulência. Fiquei me apalpando, meio que procurando saber se estava em outro plano, outra dimensão, boiando nuima antimatéria qualquer. As comissárias impassíveis seguiram retomando o serviço de bordo. Um leve tremor de dedos por sobre os copos de plástico deixava perceber que a minha experiência tinha sido um pouco a delas.

 

Quando cheguei ao aeroporto, Rosicléia* me esperava sorrindo como sempre no alto da escada rolante do desembarque num cartaz descomunal. Fui descendo como naquele filme antigo, qual era mesmo o nome? Ah, "O Céu pode esperar"! Ou quem sabe o inferno? Não importava mais. Havia tido uma lição prática de tanatologia. A turbulência e a poesia de Gilberto Gil me lembraram que muito ainda havia a ser feito e que o problema não é a morte mas sim morrer deixando portas importantes pra se abrir.

 

* Humorista cearense