O SUS, os Estados Modernos, as Luzes e as Sombras.

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“Falso Amanhecer” (1998), “Cachorros de Palha” (2007) e “Al-Qaeda e o que significa ser moderno”(2004), de John Gray, compõe um quadro inusitado, ao lado de “Nunca Fomos Modernos” (1994) de Bruno Latour e do livro “Elite da Tropa 2” (2010) de Luiz Eduardo Soares, Claudio Ferraz, André Batista e Rodrigo Pimentel. Inusitado, contra-intuitivo, complexo, mas realista.

Os três primeiros livros advogam uma postura mais humilde dos humanos frente ao mundo, especialmente com relação a natureza e com as relações sociais e econômicas que eles engendram.

A idéia de que o liberalismo e o Lasseiz-faire não se constituem sem um Estado forte e ainda assim apenas por um período limitado de tempo é uma das contestações mais contra intuitivas de John Gray a Globalização Liberal dos anos 90. No entanto, ela é coerente com os fatos que observamos hoje na política internacional.

Latour (1994) problematiza o significado de ser moderno. Advoga que ao usarmos um critério para entender os povos tradicionais que não utilizamos simetricamente ao fazermos etnografia nos laboratórios e ambientes urbanos no ocidente, estamos separando um tecido inteiriço: as naturezas-culturas que compõe as sociedades humanas.

Nunca ter sido, de fato, modernos é a tese central deste ensaio do anti-foucault do pensamento francês. Apenas ocultamos e amputamos parte da realidade social do mundo. Separamos em esferas distintas aspectos da vida social que estão inter-relacionados de modos que aprendemos a ignorar. Anti-historicismo e anti-humanismo religioso, são as respostas e remédios ao centralismo judaico-cristão exercidos pelas culturas do ocidente.

No final Latour propõe uma nova forma que nos permite incluir na arena da política os entes não humanos – os quase objetos, quase sujeitos – objetos mundo de Michel Serres, (2003) que estão emergindo ao redor dos humanos e de seu contexto político e social: A ampliação da arena democrática. Um papel para atores que fazem a mediação entre as interfaces dos humanos e não humanos reunidos na assembléia do mundo.

A questão em Tropa de Elite é romper com o maniqueísmo que impregna o juízo comum. Juízo no sentido arrogante com o qual o senso comum atribui significado moral e valor ao modo como as pessoas vivem suas vidas respondendo a contingências que lhes tolhem a liberdade. Mais do que limitar as escolhas, as circunstâncias e contingências retiram a substância do conceito de liberdade. Uma série de histórias que acompanhamos pelo noticiário policial ganha contornos mais familiares e próximos com a descrição de seus personagens.

Com as fissuras surgidas no conceito de liberdade, patrocinadas pela leitura estruturalista nos anos 70 (sim ela não é tão citada, mas deixou suas marcas indeléveis) e pela neurociência contemporânea perdem força os conceitos de pessoa e de autonomia egoísta. A pessoa, mais precisamente, o indivíduo racional que parecem fundamentar a moral e a metafísica liberal e ocidental desmorona frente à crise da falência das promessas e apostas do iluminismo: Liberdade, igualdade e fraternidade.

Tanto em “Elite da Tropa 2” como nos demais livros, a realidade nos parece chocante, ameaçadora e incognoscível. Um turbilhão sem sentido em uma marcha sem direção. Mas não há de ser com a realidade que há algo de errado. Muito provavelmente a lente (“ocidentalocêntrica”) com a qual enxergamos a realidade é que está com defeito. Mesmo depois de termos canibalizado e digerido o mito da caverna de Platão parece que as condições do mundo, nas sombras ou na luz, não estão se encaixando em nossa racionalidade.

Qualquer um destes autores pode ser facilmente confundido com apologistas do irracionalismo. Mas, aparentemente, eles apenas evocam um lugar menos arrogante para o papel da razão e suas luzes na hiper-modernidade que derruba os mitos messiânicos e escatológicos da redenção e da plena iluminação. Tudo muito cristão, muito marxista e muito liberal, segundo John Gray.

Os anos 90 foram marcados pelo discurso do fim da história e pelo triunfo do modelo liberal democrático como forma de vida universal. Em algum momento antes e depois do ponto de mutação marcado pelo 11 de Setembro de 2001, a história recomeçou e o ciclos de ganhos e perdas recorrentes no âmbito da economia e das sociedades humanas recomeçou. Foi um tombo, um desmoronamento, para a população do ocidente que acreditou no neoliberalismo e na experiência uniformizadora que a globalização teria.

Como anjos caídos hoje começamos uma espécie de aprovisionamento para os tempos difíceis que virão logo a seguir. Organizamos uma espécie de inferno onde o luxo, a volúpia da carne nua e exposta em brasa, atormentam e fascinam.

Tanto na forma da vida vivida a crédito, majoritária no ocidente, como no da poupança compulsiva no caso do Japão. Uma bolsa de apostas de um lado de compensação antecipada, de outro, de previdência, na iminência de um futuro catastrófico como descreve Zygmunt Bauman em “Medo Líquido” (2006).

O medo está globalizado. No mundo todo um discurso da hipermodernidade se dissemina junto com a expectativa de uma mutação catastrófica. As "coisas" portam um signo de morte pela impregnação do discurso do aquecimento global e da crise de escassez dos recursos naturais. Possuir coisas gera uma certa culpa.

O “ter” não define mais o padrão social desejável. Em minha opinião, a velha dicotomia entre o "ser e o ter" caiu por terra.

Hoje a questão é o acesso. A inclusão em grupos cada vez mais exclusivos que podem consumir bens e serviços. O objeto de consumo é cada vez mais imaterial no sentido em que o objeto apenas dá a oportunidade de vivenciar algo. De preferência sob o olhar atento de todos os que não foram convidados. Dos que só podem assistir através das multimídias diversas os que vivem a " boa vida" legítima.

As próprias relações humanas, enquanto evento, são os produtos finais do acesso aos objetos de consumo. O tempo está literalmente sendo consumido. Mas há “apenas” uma boa forma de ocupar o tempo e esta é que custa caro e define quem, de fato é rico e os demais de nós que ocupam a longa e extensa planície desprovida do platô onde habitava a classe média que agora se extingue junto com o modo de vida burguês.

A comida que me permitirá ter o corpo que é a chave para ter acesso aos encontros de luxo. A parafernália de equipamentos que permite estar conectado: carro celular, televisão e cinema só diferem em forma e tamanho. Tudo é apenas meio para acesso ao hiper-tempo das relações humanas que definem o padrão desejável, mas inatingível, da vida que tem o carimbo da grife de legitimidade.

Assim, mesmo os poucos que desfrutam de um padrão de conforto inédito na história da humanidade, vivem como excluídos do que realmente tem “valor”. Convertemo-nos em expectadores da boa vida. Mesmo com mais expectativa de vida, com mais interconexão, com mais fartura alimentar, vivemos com medo e frustração.

Parece que todo o esforço humano racional resulta em uma presença constante da violência que manteria um equilíbrio matemático que seria contingente e necessário, ao mesmo tempo, como descreve Michel Serres (2003, p.116). Vi esta reflexão aparecer sobre a forma de um comentário espirituoso de um personagem em "Raízes do Mal" (1995) de Maurice Dantec. Um livro em que violência explicita e tecnologia se articulam com psicoses e a desestruturação das famílias e do Estado de Proteção Social.

O sucesso no combate aos traficantes por meio da violência policial redundou na violência das milícias nas favelas do Rio de Janeiro. Um problema antigo não foi resolvido e um novo e mais potente foi gerado a o partir dos efeitos não calculados da ação policial.

Parece que o “mal” recorrente aponta para a estagnação na ética humana que se fundamentaria nos valores animais e não teria evolução cumulativa como no progresso do conhecimento (John Gray).

No caso do SUS o fenômeno da hiper-aceleração conceitual e da vertigem provocada pela incessante produção de sentidos se repete. Uma indústria da guerra justificava e selava pactos entre as populações das nações dominantes que foram verdadeiros sumidouros de recursos públicos durante a guerra fria.

O modelo de economia sustentável de crescimento zero como foi o do Japão – ao longo dos duzentos anos que antecederam a visita das naus negras inglesas do comodoro Perry em 1853 – depende de um tipo de pacto em torno de políticas de desenvolvimento que drenem recursos para a atenção e o cuidado com a vida. Não só a humana. Um compromisso delicado e sutil com a cultura, conforto e ordem social que não significam apenas desenvolvimento econômico.

Mas um pacto em torno do crescimento zero com investimento em atenção e cuidado parece uma utopia irrealizável. Podemos tomar como referência a forma como são utilizados os parcos recursos da previdência e saúde pública brasileira. Um cenário que pode desanimar analistas mais apressados.

O mapa dos gastos em saúde revela um conluio de interesses corporativos em que os profissionais se acotovelam onde o mercado de salários e vínculos empregatícios permite acesso aos padrões de consumo similares aos da antiga classe média.

Os critérios baseados no recenseamento epidemiológico para gastos públicos são secundários. O que não impede que os indicadores estatísticos sejam amplamente favoráveis quando comparados aos da era pré – SUS. Isso é inegável. Por paradoxal que seja, mais uma vez vemos a recorrência do mal em meio aos avanços da civilização corporificados na infraestrutura conceitual e material que caracteriza o SUS.

A tecnologia da atenção transforma a modo como as pessoas vivem de uma maneira que não podemos entender completamente, em parte pela mudança rápida (dentro do curso da existência de uma mesma geração) e também por que é o padrão de mudança que a tecnologia em geral promove na vida humana, segundo John Gray. Mas a iniqüidade, no SUS, como na sociedade em geral, se manifesta na forma da exclusão/inclusão.

A capacidade instalada permite aos empreendedores e gestores da saúde privada conveniada um padrão satisfatório de lucros. O argumento cínico de que se opera no mercado conveniado ao SUS com déficit monetário seria uma contra evidência e uma auto-refutação dos fundamentos do empreendedorismo capitalista que não podemos aceitar.

A demanda reprimida parece funcionar como uma reserva de mercado que evita uma concorrência autofágica entre os prestadores de serviço do sistema. Uma situação curiosa em que embora a demanda de atendimento em alta complexidade pudesse promover um acesso a uma acumulação de recursos ainda maior pela venda de procedimentos ao Estado, os agentes econômicos preferem a cautela: Inferem que os altos custos da ampliação da capacidade instalada podem gerar dividas de longo prazo, sem retorno financeiro em médio prazo se novas e mais baratas tecnologias de atenção forem desenvolvidas para cuidar da demanda hoje reprimida.

O efeito é que sofrem e morrem pessoas sem realizar tratamentos que a tecnologia atual disponibiliza pelo cálculo de que não vale a pena investir em aumento da capacidade de atendimento. Exatamente o inverso do esbanjamento de recurso em desenvolvimento de tecnologia armamentista na segunda metade do século XX em favor do pacto de segurança firmado entre as nações do ocidente liberal e socialista.

O mesmo se repete com a guerra às drogas e com a guerra ao terrorismo neste início de milênio neste início de século.

No caso da infraestrutura de atenção em saúde, apenas o Estado parece ser capaz de investir as altas somas sem expectativa de retorno monetário e visando o aumento do nível de desenvolvimento humano – IDH.

Mas aí a pressão para promover o saneamento fiscal das contas públicas e a retirada do Estado da economia exigida pela direita conservadora freia a possibilidade de a população se beneficiar plenamente dos bens de civilização disponíveis a atenção à saúde.

Uma análise complexa, nos termos propostos por Edgar Morim, ou seja, a busca de um método racional para tratar o conjunto dos fenômenos pode ser irrealizável em tempo hábil. Ou, de outra forma, não teremos o tempo necessário para o avanço cognitivo. Especialmente quando consideramos a aceleração singular causado pela interação dinâmica dos fenômenos da hipermodernidade.

Precisaremos conceder mais espaço para o imponderável, nos contentarmos com diagnósticos pontuais, porém mais realistas, menos impregnados do apego ao mito do progresso, a escatologia messiânica de que a providência irá nos socorrer no final.

A História da vida em nosso planeta (e por extensão da humanidade) não tem um sentido e uma direção. Isto já nos ensinou Darwin. O ser moralmente bom é um efeito de felizes acasos, do mesmo jeito que os amorais e perversos de infortúnios, como nos ensinou Freud. Porém, torcemos a evidência que emana das pesquisas com o uso dos métodos científicos e pensamos em toda a história como uma firme e contínua marcha rumo ao progresso.

Dormimos embalados pelo sonho de que de alguma forma todos os desejos humanos serão satisfeitos com nosso completo domínio da natureza e absoluta exploração de seus recursos. Criamos uma infra-estrutura conceitual artificial assentada em pressupostos messiânicos e escatológicos como forma de suportar a vida e suas incontornáveis contingências.

A ousadia humana seria e pode ser mais respeitável se acompanhada do máximo realismo possível. Assim poderemos, por exemplo, promover e defender o SUS de maneira mais eficiente. Se pudermos ser menos assimétricos ou cartesianos quando considerarmos as complexas engrenagens de interesses coletivos abrigados no ceio do Sistema de Saúde Pública do Brasil, certamente olharemos os ganhos e as iniqüidades do SUS, como ganhos e perdas recorrentes.

Ultrapassar este ciclo de avanços e retrocessos é nosso desafio. Manter, em um horizonte previsível a integridade do sistema no sentido de promover um equilíbrio benéfico para o bem comum é um projeto capaz de embasar pactos e compromissos amplos e ao mesmo tempo pontuais.

O estabelecimento de uma lealdade a humanidade, em relação às lealdades de clã, família e corporação (da forma como problematizada em “A Elite da tropa 2”) será provavelmente maior empreendimento humano dos próximos séculos. O SUS é parte das cláusulas de uma futura constituição dos termos deste desejado e possível pacto de lealdade a humanidade. Uma aposta, sem dúvida, incerta, improvável e contra a qual pesam a escassez de evidências (não mais que efêmeras) na história das civilizações.

A utopia, que em minha opinião não morreu é essa. O sonho de construir, em meio ao caos dos imoderados desejos e necessidades da vida um bem comum que resista a degradação cíclica em que até aqui estiveram enredadas todas as civilizações e impérios. Esta utopia requer mais humildade e moderação do que arrogância. Um pacto de coexistência entre as luzes e as sombras.