Sobre aquilo que o estudo do IBGE não mostra e não quer mostrar – Ou, o mito do “preconizado pela OMS”.

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O estudo do IBGE sobre a Assistência Médico-Sanitária lançado essa semana, teve forte impacto na mídia gerando debates sobre diversos características do nosso sistema de saúde.

A posição ocupada pelos setores público e privado, o financiamento das ações, a distribuição de leitos e tecnologias ou mesmo as diferenças tendências de oferta da assistência em todas as regiões do país. 

Como resultado, a mídia bateu com força na tecla da falta de oferta de tecnologia e leito para a população sem, de fato, gerar qualquer reflexão sobre as condições da saúde pública do Brasil.


 

Primeiro deve-se levar em consideração que a repetição, ad infinitum, de que o acesso a tecnologia dura – equipamentos e estrutura física – seriam por si só garantia de bom serviço. Isso não é necessariamente verdade, nem o seu contrário necessariamente mentira. 

Oferecer a população, segundo a sua demanda, o que há de mais tecnológico (e mais caro na grande maioria das vezes) obriga o setor a operar dentro da lógica de que a clínica seria capaz de absorver e resolver o resultado de todas as contradições sociais.

Essa visão hermética do nosso sistema de saúde, o qual o destaca da sociedade no qual está inserido, se esquece que o processo de adoecimento, da sua gênese ao seu desfecho, é influenciado principalmente pela forma como a sociedade se organiza. Não é de se estranhar que quem tenha mais recursos tenha acesso a melhores condições de saúde. Nem que seja, no mínimo, a equipamentos.

Além de se reforçar a dependência de uma indústria médico-hospitalar cuja influência vai da criação de um senso comum no qual a boa saúde é aquela que possui a intervenção da moda, de última linha, também subverte o papel dos profissionais de saúde, da sua formação a sua atuação. 

Isso não significa também que a simples construção de uma rede de Atenção Básica com baixa densidade tecnológica e financiamento seja capaz de dar conta das tarefas que a realidade lhe impõe. A forma como a atenção primária a saúde é trabalhada em nosso país revela que, de fato, a nossa sociedade institucionaliza, na  assistência, o forte caráter de classe que existe em nosso país. Isso porque a população, em sua maioria, depende da rede Básica de serviços, rede essa que desde a sua instalação trabalha no limite do esforço humano. Baixa remuneração dos profissionais, formação inadequada, precarização da estrutura…ainda que existam resultados práticos louváveis, como a diminuição dos índices de mortalidade infantil, o seu papel acaba sendo o de aliviar as tensões que o modelo hospitalocêntrico reforçava. Nem mesmo a tão falada inserção como agente reorganizador do SUS ou de promotor de participação social são relevantes.

Deve-se lembrar também que a diminuição do número de leitos de que fala o estudo, principalmente por parte do setor privado, nos reforça uma dura constatação: o setor privado opera em função do lucro. E só.

Isso fica evidente na preponderância do Estado na Emergência e a pequena participação do particular. Ou mesmo do aumento da participação do privado com fins lucrativos sobre o privado sem fins lucrativo. Aumentar a rotatividade dos leitos ou mesmo parar de oferecê-los são estratégias a iniciativa privada para aumentar a lucratividade da sua empreitada

A adoção de critérios de corte como os relacionados ao número adequado de leitos por habitante levanta uma questão importante. Como tais critérios são definidos.

Segundo o texto o Ministério da Saúde sugere um patamar de 2,3 leitos por 1000 habitantes. Daí conclui-se que parte significativa da união está em déficit quanto a atenção a saúde. Além disso discute-se também o número de profissionais por unidade federativa. Enquanto a maioria das regiões apresenta números acima dos recomendados pela OMS, a região Norte, por exemplo, apresenta níveis abaixo do esperado e um alarmante perfil de queda da oferta.

A situação da saúde Brasil é preocupante sem nem mesmo uma análise mais aprofundada. De fato há uma série de elementos que devem ser discutidos para que se melhore as condições de acesso ou mesmo de trabalho neste setor. Mas quando a discussão passa a girar em torno de "números preconizados pela OMS" aparece um grande problema. A OMS simplesmente não preconiza a maior parte do que é dito.

Neste documento Leitos por Habitantes e Médicos por Habitante a OPAS/OMS esclarece no primeiro parágrafo que 

"A Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Pan-americana da Saúde (OPAS) não recomendam nem estabelecem taxas ideais de número de leitos por habitante a serem seguidas e cumpridas por seus países-membros. Tampouco definem e recomendam o número desejável de médicos, enfermeiros e dentistas por habitante. Não existe, ainda, orientação sobre a duração ideal das consultas médicas ou um número desejável de pacientes atendidos por hora."

 

Isso não significa que não se deva discutir o número de leitos ou de profissionais adequados a uma oferta adequada de saúde a população. Muito pelo contrário. O planejamento das ações deve passar prioritariamente por um exame adequado das necessidades em qualquer área. O que não se pode é confundir o planejamento do Ministério da Saúde para determinados setores com uma determinação universal da OMS   sobre a distribuição dos recursos de um determinado país ou região. Não se pode esquecer, também, que dar a tal orgão a posição de fiel na balança quanto a todos assuntos que envolvem a saúde é utilizar como paradigma a opinião de uma instituição cujos princípios e diretrizes são, desde a sua origem, disputados por diversas forças políticas, nem sempre preocupadas com o bem-estar coletivo 

Se todo programa de metas corre o risco de ser distorcido ou utilizado de forma inadequada, o que deve-se dizer de indicadores que não assegurem, no mínimo, os direitos conquistados na Constituição de 1988?