Medicalização e mudanças nas fronteiras entre normal e patológico

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Medicalização e Mudança nas Fronteiras entre Normal e Patológico

As crianças são seres metafísicos, disse Gilles Deleuze, a propósito das explorações que fazem para entender o mundo que as cerca. Criam suas próprias “teorias” para apreender as maquinações do ser e do tempo em que vivem.

Nós, profissionais de saúde, na maioria das vezes, ao invés de segui-las em suas investigações, fazemos interferências classificatórias, diagnosticando e medindo suas capacidades. Apostamos num aumento de seus desempenhos de todas as espécies, numa busca frenética de estimulantes ou calmantes de seu comportamento.

 

Trataremos aqui destas questões como forma de alerta para não nos tornarmos agentes do que Jean- Luc Godard disse numa frase antológica: “crianças são prisioneiros políticos”. Dos pais, dos professores, do Estado… Formas de subjetivação são criadas nesta delicada relação adulto-criança.

 

Os modos de ser criança hoje nos trazem muitas questões sobre a vida. Os pequenos são uma espécie de “balão de ensaio” para as nossas políticas afetivas e, ao mesmo tempo, as realimentam com novos desafios, numa troca ativa e potente.

Há quem considere, após muita reflexão e prática com crianças e adolescentes, que os “transtornos” que afetam a infância no contemporâneo seriam efeito de um modo de tornar as diferenças passíveis de ser tratadas como se fossem doenças.

 

O I Seminário Internacional sobre a Educação Medicalizada: Dislexia, TDAH e outros Supostos Transtornos reuniu profissionais de vários campos da saúde – médicos pediatras, neurologistas, sociólogos, psicólogos, assistentes sociais, professores, agentes de saúde, entre outros – em torno da medicalização dos comportamentos. Abriram-se novas  abordagens, tendo como norte uma perspectiva biopolítica da realidade. 

Constata-se uma espécie de alargamento do campo do que é considerado patológico hoje, de uma forma visível para todos, sem que tenhamos que nos aprofundar nos estudos sobre a história da infância. Basta estar em contato com crianças.

Talvez o lugar mais difícil, uma espécie de fio da navalha, seja o ocupado pelos pais. Desqualificados em seu saber, estão sempre se deparando com um especialista acerca de cada faceta da vida de seus filhos. O mesmo se dá com os professores.

Medicalizar modos de ser pode parecer `a primeira vista uma forma de cuidado. Mas isso não se sustenta por muito tempo. Tomemos como exemplo a administração do Metilfenidato no Brasil. O número de caixas vendidas em 2000 foi de 71.000. Em 2008 já eram 1.147.000. Essa adesão massiva parece ser mais reveladora de um descuido. E a prática de legitimação e confirmação do diagnóstico por intermédio do uso do medicamento? Que dizer dela? Imaginemos o que esta multiplicação de números provoca em termos de uma crescente patologização das manifestações de “agitação/ desligamento” nas crianças.

 

“Dia Nacional da Dislexia”

 

Outras medidas identificadas apressadamente com o “cuidado” seriam as mobilizações de esforços em torno da detecção precoce, por intermédio da capacitação de professores para rastrear sintomas. Há também projetos de lei que vão nessa direção, medidas de um mesmo “pacote”, que retiram do horizonte de entendimento a análise da enorme variabilidade e complexidade da questão.

 

As velhas explicações organicistas, abandonadas no passado justamente por serem redutoras ou simplificadoras dos fenômenos, retornam em novas roupagens. Os avanços tecnológicos colocaram em jogo uma nova visibilidade dos processos cerebrais e não se pode negar os ganhos inestimáveis no campo da pesquisa, deteccão e tratamento de doenças. “Olhar” o cérebro em funcionamento pode abrir ou fechar o entendimento: em atividades complexas como a aprendizagem da leitura e escrita pode-se incluir o paradigma biológico mas nunca tomá-lo como o lugar da verdade sobre os processos do vivo.

 

TDAH: um nome triste para a “inquietação” diante do mundo

 

Gabriel, Eric e Emanuel são algumas das incontáveis crianças que chegaram até mim com a queixa de hiperatividade ou transtorno de ansiedade.

Os tres padecem de uma avidez e curiosidade insaciáveis a dominar seus pequenos corpos e mentes.

Em todos a coincidência da origem do encaminhamento: escola.

Os tres portam cartas ou relatórios sobre seu comportamento.

A mesma triste descrição:

Crianças desligadas, agitadas, desrespeitadoras das regras, “opositoras” – esta característica merece destaque pelo que carrega de negatividade no trato com crianças – , “dizem tudo o que pensam”, agressivas e com comportamento “desviante do normal”. 

“Tá tudo dominado”, diz a frase do rapper.

“São prisioneiros políticos”, diz Godard.