Notas sobre Biopoder – Parte I

12 votos

 Resenha do artigo “O CONCEITO DE BIOPODER HOJE” escrito por Paul Rabinow e Nikolas Rose, em POLÍTICA & TRABALHO, Revista de Ciências Sociais, N.º 24 Abril de 2006 – p 27 – 57.

Ao longo da resenha é realizado o experimento de aplicar os conceitos de biopoder e biopolítica aos desafios cotidianos que vivemos na implantação e consolidação do Sistema Único de Saúde – SUS. É uma tentativa problematizar de forma analítica as hipóteses que venho formulando em outras postagens neste blog. O texto foi sugerido pelo colega Pablo Fortes e é parte do debate iniciado pelo post Estratégias do Biopoder no coração da infância. de Maria Luiza Carrilho  Sardenberg: 

redehumanizasus.net/11548-estrategias-do-biopoder-no-coracao-da-infancia
O texto de Rabinow e Rose está disponível em: 

www.cchla.ufpb.br/politicaetrabalho/painel/useruploads

/files/24/artigo_02.pdf

Introdução

Um conceito atualizado de Biopoder é delineado neste artigo, de Nikolas Rose e Paul Rabinow. Ao mesmo tempo irei tentando articular seus conceitos com algumas das afirmações que venho fazendo a partir de uma leitura embasada na ciência política e econômica em textos anteriores neste blog. Um experimento tão ambicioso, quanto incerto. A idéia é abrir caminhos para reflexão e análise de fenômenos pontuais e muito peculiares com um arsenal teórico ainda bastante instável. O prêmio é buscar uma compreensão mais profunda e refinada das dores e delícias de nosso cotidiano de trabalhadores da saúde.

Em La volonté du savoir, publicado em 1976, Michel Foucault introduziu ao longo do capítulo intitulado “Direito de morte e poder sobre a vida” a idéia de que o antigo poder soberano estava fundado sobre o direito de dispor da vida e da morte dos súditos. Em última instância era um poder exercido pelo soberano sobre a vida dos sujeitos na era clássica. Na era moderna esse poder se transfere para o Estado, porém acompanhado de uma série de mecanismos para vigiar, disciplinar, punir e aperfeiçoar os efeitos do poder sobre os corpos. É ao nível da vida que o poder é localizado e exercido durante a modernidade. Hoje vivemos uma mutação desses biopoderes, cada vez mais fundada em uma biopolítica de implicações incertas e obscuras para o que Gilles Deleuze (1989) chamou de o “futuro próximo”.

Foucault

Já em 1984 no livro On the genealogy of ethics na página 344, Foucault responde ao questionamento sobre se ele deveria estar escrevendo uma genealogia do Biopoder, que sim, que isso poderia ser feito e que na verdade ele teria de fazê-lo. Como sabemos não foi possível. Mas os passos a serem seguidos em um extenso programa de estudos estavam projetados.

Chama atenção dos Rabinow e Rose, portanto, a pouca produção acadêmica a partir das reflexões seminais de Foucault, nesta primeira década do que tem sido chamado de “século da biologia” (pelo menos até 2006). O conceito de biopoder atualmente é mais usado e relacionado à geração de energia a partir de material biológico renovável. Enquanto que o termo biopolítica se refere ao conjunto das causas ambientais e ecológicas.

Rose e Rabinow começam recuperando o conceito e o contexto em que Foucault o expressou no final dos anos 70: Um poder sobre a vida. Fundado, por um lado, em uma anatomia política do corpo humano e de outro lado, por uma série de controles e reguladores de uma biopolítica das populações. O início desta tecnologia bipolar tem início a partir do século XII.

Segundo Rabinow e Rose o conceito de biopoder introduzido por Foucault, deve incluir, no mínimo, um ou mais discursos sobre o caráter vital dos seres humanos. Além de um conjunto de autoridades legitimadas para enunciar esta verdade. Na pós-modernidade, vemos a lógica da suscetibilidade e do risco tomar, gradualmente, um lugar ao lado do discurso acerca do restabelecimento do equilíbrio perdido na doença nas diversas articulações de um biopoder desdobrado em biopolítica.

Paralelamente a isso, desenvolve-se um conjunto de estratégias de intervenção sobre a existência coletiva, tanto em base territorial, quanto em perfis genéticos, categorias de raça e etnicidade, gênero ou religião, resumido nas formas nascentes de cidadania genética ou biológica.

Tudo articulado com um plano de subjetivação, onde o indivíduo é o ator com prerrogativa e competência para atuar sobre si mesmo, fundamentada em um discurso de verdade feito, ora em termos de biossocialidade (Rabinow, 1994; 1996; 1999) ora em termos de individualidade somática (Rose, 2001; 2006).

 

Negri e Agambem
Essas linhas gerais e limitadas servem aos autores para responder a forma como Antonio Negri (2000) e Giorgio Agambem (1995) tem se utilizado dos termos biopoder e biopolítica em seus trabalhos acadêmicos. Hoje, estes dois autores são muito lidos, especialmente nos Estados Unidos. Parece que o interesse em suas obras se deve, segundo Rabinow e Rose, “a generalidade de suas assertivas para caracterizar a natureza e a essência da época atual” (2006 p. 24).

Concordo com a crítica que Rabinow e Rose fazem, no texto, ao uso dos termos relacionados ao biopoder para generalizar conclusões que pretendem elucidar nossa época de forma ampla e pouco sofisticada. Reduzir o biopoder ao “poder de alguns” de ameaçar a morte dos outros é temerário. Isso seria uma afirmação com grande amplitude para racionalizar fenômenos e pouca capacidade analítica e evidências empíricas.

Seria algo como afirmar que a emergência da hegemonia biológica de seres sexuados sobre assexuados em nosso ambiente se devesse a um poder que atuasse deliberadamente contra uns e a favor dos outros. Evidentemente que há muitas bifurcações e contínuos desenlaces possíveis e imprevisíveis para reduzir a equação do biopoder a um único conjunto de atores sociais com poder/ privilégio de determinar, a partir de sua força hegemônica, uma direção para o processo complexo de mudanças nas relações do poder com a vida. Menos ainda de decidir quem está de fato comandando quem em nível global.

Hardt e Negri (2000, p. 31) defendem que a biopolítica é uma forma de poder que se “expressa como um controle que se estende ao longo das profundezas das consciências e dos corpos das populações”. Desta assertiva deduzem que este “poder” seja exercido em nome do interesse do biocapital e gerido por corporações multi e transnacionais desde os anos 50. Segundo Rabinow e Rose, “(…) eles assimilam este biopoder onipotente e persuasivo de uma idéia derivada de um ensaio pequeno e especulativo do filósofo francês, Gilles Deleuze, no qual ele argumenta que passamos das sociedades “disciplinares” às “sociedades de controle” (Deleuze, 1995)”.

SUS e Biopoder

E plausível, como tenho ressaltado em textos anteriores, que os interesses mercadológicos que incidem sobre o SUS, aqui designado como biocapital, explorem o perfil epidemiológico das populações com se estas fossem reservas de biopotência monetária.

Uma reserva que é mobilizada segundo o interesse de geração de riqueza ou acúmulo de capital. É o caso referido em alguns de meus textos anteriores do tratamento dado a demanda reprimida. Mas isto provavelmente ocorre em um mapa de movimentos rizomáticos (Na asserção que Deleuze dá ao conceito em entrevista publicada no jornal Liberacion em 23 de Outubro de 1980 e publicado no Brasil por Carlos Henrique Escobar (org. 1991)).

Portanto, também no caso do tratamento a demanda reprimida do SUS, não é plausível que se trate simplesmente de um fenômeno que se possa remeter a uma dimensão única: o protagonismo dos interesses de empresas privadas e de multinacionais monoliticamente orientadas.

Assim, mais do que uma metáfora de trans historicidade, o conceito de biopoder em Foucault nos ajuda por propor um extenso programa de pesquisa genealógica e análise histórica. O biopoder não está emergindo para sustentar uma única forma de poder totalizante, um único grupo dominante ou conjunto de interesses. Multiplicidade de fontes. Aqui é que as ferramentas conceituais em desenvolvimento podem ser úteis para analisar e agir sobre a realidade que observamos na implantação e consolidação do Sistema Único de Saúde:

– A constelação de interesses corporativos e econômicos no nível sub-estatal não constitui “o mal”. Esta multiplicidade não se opõe a uma pureza ou unidade “do bem” em torno do verdadeiro interesse do coletivo que seria espelhado perfeitamente em um SUS legítimo.

Até porque a evidência empírica é que durante a curta história do SUS, e mesmo antes dele, os indicadores de saúde, como o índice de mortalidade infantil, expectativa de vida são progressiva (e talvez amplamente) favoráveis ao longo de todo o século XX.

Agambem (1995), por sua vez, identifica no Holocausto o mais bem acabado modelo exemplar de biopoder, assim como outros autores que afirmam que o nazismo é a conseqüência última da fé cega no iluminismo, humanismo ingênuo e historicismo progressista (John Gray, 2007).

O modelo de biopoder delineado por Agambem é criticado por Rabinow e Rose por ser tomado como uma espécie de sentido oculto em todas as formas de poder desde a antiguidade. Essa interpretação tem, sim, força explicativa e analítica. Mas sua fraqueza é relacionar o poder de reforço a morte, como intrínseco a modernidade e a soberania contemporânea, segundo Paul e Nikolas. A reiterada instauração de estados de exceção seria inerente ao poder de Estado que assim poderia dispor da vida de seus cidadãos, segundo Agambem. Um diagrama único, portanto, para analisar uma ampla gama de fenômenos complexos, se mostra insuficiente por sua excessiva generalização.

Mais razoável é o Holocausto entendido como uma das configurações possíveis (radical e singular, segundo Foucault, 2002, p. 260) do biopoder moderno. “O Holocausto é irredutível a tanatopolítica, nem tão pouco é a “obscura verdade” oculta do biopoder”, resumem Rabinow e Rose.

Como já formulada em muitos outros trabalhos a crítica a autores anticapitalistas e neomarxistas é sua fundamentação em bases dogmáticas (não examinadas), teleológicas, messiânicas e escatológicas (John Gray, 2007).

A economia moral, aparentemente, é mais poderosa que o conjunto de poderes que se deseja reduzir a ação do poder soberano. No regime de economia moral, de relações de trocas em mercados não monetários o poder soberano é um elemento adicional no conjunto da equação do biopoder contemporâneo.

Desta forma, como um elemento a mais, o Estado moderno tem legitimidade e prerrogativa para operar na promoção da segurança e prosperidade da sua população. Faz isto respondendo a discursos de verdade produzidos no espaço do social por aparatos que produzem estes discursos, em sinergia ou oposição a outros aparatos, contra ou instrumentalizando, em seu favor a ação do Estado.

Neste ponto podemos pensar no sistema de saúde brasileiro como exemplo claro de emergência de um biopoder em forma dispersa e aberta. Um espaço onde múltiplas autoridades disputam em torno da produção de verdades que tangem a máquina do Estado em uma ou outra direção. Sempre em nome da hegemonia de uma verdade enunciada em nome do direito a vida, a saúde e a cura.

Novamente, aproveito para articular algumas idéias que tenho proposto neste espaço da RHS com o pensamento de Rabinow e Rose. Os chamados circuitos da bioeconomia, e da capitalização da biociência nos dão a visão de uma economia das trocas que investe no conhecimento molecular sobre a vida e aposta em uma nova indústria do cuidado e da atenção.

Vida, verdade e valor se constituem por conexões entre interesses e disputas de vários atores. Podemos relacionar, por exemplo, as apostas e perspectivas abertas pela medicina genômica, como a defesa, sócio-política, da lei do ato médico no Brasil. A hipótese é de que esta lei retome e atualize o instituto medieval das corporações de ofício. Esta retomada é feita para garantir e sancionar o direito de aprender e aplicar um conhecimento, cada vez mais protocolar e menos analítico, para um determinado ator social, no caso a corporação de profissionais médicos.

Dito de outra forma, os sucessos prometidos pela medicina genômica podem vir a generalizar o “efeito Google” que já se observa nos consultórios médicos. Um conjunto cada vez mais diversificado de protocolos médicos é estatisticamente eficiente no trato ao perfil epidemiológico de grupos populacionais cada vez mais específicos.

Deste modo, pesquisa e desenvolvimento de tecnologias em saúde estão formando um banco de dados acerca de protocolos de diagnósticos e tratamentos para uma gama cada vez mais ampla de condutas clínicas. Este banco de dados está disponível gratuitamente para qualquer pessoa alfabetizada e motivada para compreender em detalhes as intervenções em seu próprio corpo.

Com isso, um ator social estaria, além de garantir a hegemonia atual em seu campo de atuação, fazendo apólices de seguro remetidas a garantir prerrogativas  de prescrição clínica que serão mediadas por entidades não-humanas que venham a operar o conhecimento acumulado através de alguma forma de inteligência artificial.

A lei do ato médico asseguraria o privilégio da mediação entre usuários e estes bancos de dados inteligentes que deterão o biopoder de prescrever tratamentos otimizados para lidar com vulnerabilidade e risco, além do tradicional tratamento, alívio e cura que vigoram desde o nascimento da clínica.

O contexto em que essas disputas pelo direito de enunciar verdades envolve atores que buscam instrumentalizar as instituições do Estado segundo suas conveniências. O protagonismo liberal dos sujeitos nas sociedades ocidentais se volta como força de pressão contra o Estado.

A felicidade é entendida como remetida aos termos biológicos, vitais e corporais. Para isso, usando os termos de Deleuze, se atua no plano molar sobre grupos populacionais e no pólo molecular se busca a individualização das estratégias biopolíticas de medicina genômica.

Ao longo do artigo Rabinow e Rose prosseguem desenvolvendo os argumentos em torno do conceito de biopoder propondo uma analítica a partir dos desdobramentos do biopolítica em torno de três tópicos:
• Raça;
• Reprodução;
• Medicina Genômica.

Eu seguirei o trabalho de resenhar o artigo em mais três postagens. Cada uma relacionada a um desses três tópicos respectivamente. Meu objetivo será o de problematizar o SUS dentro dos desdobramentos em torno do conceito de biopoder. Seguindo os passos virtuais que Foucault e Deleuze projetaram no futuro que agora, em parte, é nosso presente.

Referências

Obs.: As referências são as utilizadas pelos autores do Artigo que é objeto desta resenha, mais os autores citados no texto como ferramentas para pensar o SUS e o Trabalho em Saúde. Por isso a mescla das normas internacionais com as da ABNT.

AGAMBEN, G. (1995). Homo sacer. Torino, G. Einaudi.

DELEUZE, G. (1995). Postscript on Control Societies. Negotiations. New York, Columbia University Press: 177-182.

DELEUZE, G. (1989). Qu’est-ce qu’un dispositif ? Michel Foucault, philosophe. Paris, Editions de Seuil.

ESCOBAR, Carlos Enrique de. (ORG.) DOSSIER DELEUZE. Rio: Hólon Editorial, 1991.

FOUCAULT, M. (1984). On the genealogy of ethics. The Foucault Reader. P. Rabinow. New York, Pantheon.

FOUCAULT, M. (2002). Society must be defended: lectures at the Collège de France, 1975-76. New York, Picador.

FOUCAULT, M., P. Rabinow, et al. (2003). The essential Foucault: selections from essential works of Foucault, 1954-1984. New York; London, New Press.

HARDT, M. and A. Negri (2000). Empire. Cambridge, Mass., Harvard University Press.

GRAY, John. Cachorros de Palha: Reflexões sobre humanos e outros animais. Rio de Janeiro: Record, 2007.

RABINOW, P. (1994). “The third culture.” History of the human sciences 7(2): 53-64.

RABINOW, P. (1996). Artificiality and Enlightenment: From Sociobiology to Biosociality. Essays on the Anthropology of Reason. Princeton, Princeton University Press: 91-112.

RABINOW, P. (1999). French DNA: trouble in purgatory. Chicago IL, University of Chicago Press

ROSE, N. (2001). “The politics of life itself.” Theory, Culture & Society 18(6): 1-30.

ROSE, N. (2006). The Politics of Life Itself: Biomedicine, Power and Subjectivity in the Twenty First Century. Princeton, NJ, Princeton University Press.