Notas sobre Biopoder – Parte II

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Introdução

Para aprofundar e desenvolver seus argumentos, Rabinow e Rose, propõe uma analítica do biopoder enfocando três tópicos que condensam algumas dos caminhos e desdobramentos da biopolítica hoje: Raça, Reprodução e Medicina Genômica.

A questão (esclarecem Rabinow e Rose), não é a unidade conceitual, essência, verdade ou falsidade que possam estar presentes nessas formas de biopoder em suas respectivas biopolíticas. Há que se reconhecer o caráter pontual em meio a uma dispersão que impede o açodamento de se perceber precocemente uma racionalidade geral emergindo.

Temos a oportunidades de exercer um empirismo modesto. Atentos à instabilidade de um fenômeno que não é familiar em termos históricos. Neste território em movimento “a raça, a saúde, a genealogia, a reprodução e o conhecimento são mesclados, recombinando e transformando continuamente um ao outro” (Rabinow e Rose, 2006 – p.39).

Raça

A raça parecia, na virada do século, um conceito destinado à memória histórica em virtude da constatação surgida do mapeamento genético: Apenas uma pequena diferença percentual no mapa genético nos diferencia dos demais primatas. E diferenças significativas foram verificadas entre indivíduos de uma mesma etnia. Ao passo que, semelhanças inesperadas apareceram entre indivíduos de etnias distintas.

Parecia a pá de cal que vinha a sepultar um discurso de verdade racista firmado no conhecimento biológico. As descobertas da genética vinham, finalmente, a juntar-se ao discurso político expresso desde a declaração das nações unidas, de 1963, sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial. É certo que a discriminação racial e os conflitos étnicos persistiram e persistem, mas, reiteradamente, fora dos discursos de verdade da biologia. Agora sua superação viria de uma formação discursiva diretamente ligada à evolução e ao organismo humano.

No entanto, esta superação mostrou-se uma meia verdade, segundo Rabinow e Rose. Novas descobertas ao nível do DNA molecular estão recolocando em cena um discurso de verdade na biologia que reabilita de forma relativa o conceito de raça. A investigação que está produzindo novos dados a respeito dos perfis étnicos é muito técnica e pode ser mais bem apreciada no texto original de Rabinow e Rose.

O curioso é que esta reemergência do perfil étnico surge como efeito não desejado da reivindicação de uma cidadania genética que não se reduzisse ao mapa do genoma humano do homem branco. Ela surge justamente da luta social por um mapeamento genético que contemple a diversidade expressa na população humana.

Houve uma forte militância para que determinadas vulnerabilidades e suscetibilidades de grupos étnicos específicos fossem identificadas. A partir da identificação, a esperança era (e ainda é) que se produzissem condutas, diagnósticos e fármacos para prevenir e tratar as vulnerabilidades identificadas em grupos específicos das populações humanas.

Constatamos esse movimento rumo a uma cidadania genética em meio às operações de limpeza étnica ao longo da segunda metade do século XX. Especialmente após a queda do regime soviético, como na Albânia, mas também em Ruanda, no continente Africano. Sem necessidade de nenhuma incidência ou justificativa fundada em discursos de verdade biológica, clássica ou genômica.

O massacre perpetrado pelos hutus foi instigado pelo discurso nada sutil de que os futsis eram insetos ou baratas. Ou seja, não havia preocupação com uma fundamentação biológica para a tentativa de eliminação de toda uma etnia.

Para John Gray (2007, p. 195), citando R. O. Wilson, esta guerra civil em Ruanda além de ser efeito da deformação das culturas tribais por seus dominadores belgas, tem componentes de uma luta interna relacionada ao crescimento demográfico descontrolado e a escassez de recursos naturais, no caso a água.

Então, os discursos de verdade da biologia não tiveram relevância em mais este conflito étnico. As teses geneticistas e evolucionistas já foram vulgarizadas para endossar políticas de eugenia no início do século XX e durante o nazismo, mas não a biologia como disciplina do conhecimento.

O aprofundamento do conhecimento genético no final do século XX com o sequenciamento do DNA, basicamente, levou a constatação de que dois indivíduos, aleatoriamente escolhidos dentre a população mundial seriam 99,9% idênticos. No entanto, a variação em uma unidade base do DNA, chamada de Polimorfismos Nucleotídeos Únicos – PNU, são muito significativos, notadamente em relação à vulnerabilidade às doenças.

A identificação destas variações está associada ao interesse de uma política saúde igualitária aplicada às populações em sua diversidade complexa. Várias instituições e grupos de pressão têm investido mobilização política e financeira: Conglomerados da indústria farmacêutica investem em pesquisa e propaganda nas novas potencialidades terapêuticas do conhecimento do genoma humano. As ONGs militam pela inclusão de uma diversidade ampla no mapeamento genético.

Desde 1999 em diante estes grupos tem promovido e apoiado um mapeamento do perfil genético ao nível molecular. Este mapa reflete o núcleo das tipologias raciais do século XIX – branco (caucasiano), negro (africano), amarelo (asiático), vermelho (nativo norte americano). Ou seja, segundo Rabinow e Rose, na maneira leiga de ver as variações humanas permanece o molde dominante de séculos passados. Uma biomedicina, específica para perfis genéticos comuns a africanos norte-americanos, por exemplo, tem mobilizado a indústria farmacêutica.

Grupos que representam os afrodescendentes americanos buscam traçar seu perfil genético, até suas raízes ancestrais no continente negro. A indústria farmacêutica responde a essas pressões através do desenvolvimento da técnica de mapeamento genético ao nível molecular, capaz de encontrar Polimorfismos Nucleotídeos Únicos – PNU – comuns aos habitantes de “comunidades pilhadas pelo comércio escravo na Nigéria ou em Camarões” (p.43).

Percebi as conseqüências deste movimento social associado à indústria farmacêutica, quando assisti a um dos episódios do popular seriado House . Uma subtrama (presente no roteiro do episódio) trata da recusa de um paciente negro a aceitar o tratamento com um medicamento anti-hipertensivo desenvolvido para afrodescendentes. O paciente não aceitou a prescrição do Infectologista House e afirmou que só usaria o medicamento igual ao que é receitado para pacientes brancos. A percepção deste personagem é guiada por experiências históricas em que a especificidade étnica na sociedade americana favorecia apenas a população anglo saxã. O episódio termina com outro médico da equipe de House, negro, convencendo o paciente a se deixar beneficiar pelo novo tipo de anti-hipertensivo.

Como vemos o tema é complexo e o centro de uma polêmica em que até os diretamente interessados podem ficar confusos e desconfiados. Por mais tentador que seja Rabinow e Rose advertem que ver neste quadro uma nova complexidade que abarque a diversidade humana é otimismo exagerado. O mais prudente é considerar os novos mercados biogenéticos que emergem para a indústria farmacêutica (baseados em uma identidade associada a filiações ancestrais e geográficas) como ainda indiscernível em termos de saber se serão colocados a serviço da vida, do biocapital ou de ambos em uma composição equânime. Uma utopia interessante onde os mercados servissem a vida e não se excluíssem.

Assim, devemos estar atentos à direção que o fenômeno tomará enquanto vai se estabilizando. Conclusões amplas e definitivas acabam por mostrarem-se precárias empiricamente. Inúteis do ponto de vista analítico. No Brasil o próprio movimento negro tem tomado a bandeira do combate à anemia falciforme como um fator de aglutinação em torno do tema da consciência negra. Uma vulnerabilidade étnica é usada como fator de constituição de uma identidade genômica e de uma biocidadânia.

Em nosso país, Darcy Ribeiro (1968) demonstrou que a escravidão foi perpetrada por mestiços e mulatos. Então, a idéia de que se deva valorizar uma consciência negra para fundamentar as políticas de afirmação e de reparação aos afrodescendentes tem tido um efeito efetivo já que as políticas de afirmação vigoram a despeito de todo o debate acalorado em torno de sua eficácia e oportunidade. Como vemos, também aqui a formação discursiva que fundamenta as políticas afirmativas é política e histórica.

De qualquer modo, cabe ressaltar que no Brasil bem antes de se pensar em uma nova base para a indústria da saúde, estamos lidando com o dilema do acesso universal aos recursos, tecnologias e técnicas de atenção já disponíveis. E como vemos na inversão perversa da pirâmide social em que a população afrodescendente é maioria nos presídios e minoria nas universidades. Também no acesso aos recursos da atenção em saúde vemos o dilema inclusão / exclusão repetir a segregação étnico-econômica geral da sociedade brasileira.

Tragicamente o efeito de uma perspectiva de mudança no paradigma que orienta a atenção tem feito investidores privados e gestores públicos considerarem oneroso demais gastar com uma base tecnológica provavelmente condenada a ser superada a médio e longo prazo em nome das promessas da medicina genômica.

É um escândalo e uma das razões para o eterno dilema do financiamento. Tratamentos de alta e média complexidade são bem remunerados pelo Estado. Mas são insuficientes porque o investimento em mais infra-estrutura de atenção constitui uma aposta de alto risco para o biocapital. Os fatores culturais, fortalecidos pela lógica da iniciativa privada, ressoam sobre as políticas públicas de saúde. Além disso, o patrimonialismo e a mistura entre interesses públicos e corporativos, contribuem para que o sistema de saúde seja pontuado por inúmeras formas de carreira, contratação e vínculos de trabalho. Uma verdadeira pirâmide econômica onde temos feudos de excelência am alta complexidade mobilizadoras de um biopoder hegemônico em meio ao oceano de precariedade da atenção básica à saúde.

A raça é uma categoria reemergente no discurso da biologia a se confirmarem às promessas da biomedicina. No entanto, a qualidade de vida e o tratamento de vulnerabilidades e suscetibilidades parece ser o foco das pesquisas atuais. Ainda assim a problemática da saúde passa pela equação do acesso ao recurso tecnológico já disponível.

Referências

As referências são as utilizadas pelos autores do Artigo que é objeto desta resenha, mais os autores citados no texto como ferramentas para pensar o SUS e o Trabalho em Saúde. Por isso a mescla das normas internacionais com as da ABNT.

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