Notas sobre Biopoder – Parte III

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Reprodução

A sexualidade era crucial para Foucault porque, em parte, ela constituía o elo que conectava uma anátomo-política do corpo humano e uma biopolítica das populações. Para Rabinow e Rose, hoje, as instâncias da sexualidade e da reprodução se tornaram desconexas. As praticas e simbolismos da reprodução estão se desacoplando da sexualidade. A reprodução está se tornando objeto de uma série de conhecimentos, estratégias políticas que se desvinculam da sexualidade.

Rabinow e Rose citam a lógica que uniu, no ocidente, alguns casais e médicos na busca de tornar a infertilidade uma condição médica tratável e, portanto lugar de intervenção legítima, como exemplo desse deslocamento.

Ressoa neste tipo de lógica a retórica da escolha com a ética da autonomia no coração dos modos de subjetivação liberal. A transformação da infertilidade em doença tratável exemplifica, segundo Rabinow e Rose, “a re-imaginação das habilidades humanas como abertas à reengenharia e ao melhoramento pela medicina”.

Mas na prática não mais que: Identificar doenças genéticas e aparatar casais, especialmente mulheres, para dar conta de novas responsabilidades, como tem afirmado as feministas. Nem se pensa em evitar o nascimento de crianças com vulnerabilidades ou sequer se tem às condições técnicas para modificações na qualidade global das populações. Novas formas de cuidar e de reduzir morbidade e oferecer mais qualidade de vida aos indivíduos é o que tem se mostrado viável com as descobertas da medicina genômica.

Enquanto isso as estratégias de controle populacional, abrigadas em discursos de verdade com origem na economia e demografia, prosseguem em muitos paises. Porém as fundamentações destas estratégias estão abrigadas em discursos de verdade com origem na economia e demografia.

Os governos de países pobres parecem relacionar o desenvolvimento com contenção das taxas de reprodução humana. Uma espécie de requisito para a plena modernização. O controle populacional em muitos países tem um caráter repugnante de exercício de um biopoder espúrio. Ainda assim, não se trata da clássica eugenia de meados do século XX. A sobrevivência do mais apto e a eugenia passiva ou ativa deram lugar à garantia dos interesses de prosperidade econômica nacional. Assim, a eugenia que persiste está relacionada à saúde pública. Igreja, Estado, associações nacionais e internacionais diversas, com apoio popular, tentam eliminar a fibrose cística, por exemplo. Não por seleção de embriões, mas pela interdição de casamentos.

Outras iniciativas semelhantes indicam a estratégia de reduzir a morbidade e patologia herdada em populações através da atuação sobre as escolhas individuais de cidadãos. Usando cálculos, supervisões, coerção, sancionadas por atores que incluem bioeticistas, e aprovação da opinião pública. Sem dúvida é biopolítica exercida a partir de biopoderes direcionados a vida. Mas não a clássica eugenia pela eliminação dos menos aptos ou evoluídos. Não é genocídio.

Não sabemos que futuro emergirá se as pesquisas em curso obtiverem sucesso parcial ou pleno, em um futuro próximo ou além. O êxito em massificar a identificação de mapas genômicos úteis para lidar com a esquizofrenia, depressão, doenças cardiovasculares, etc. irá mudar o chamado mundo contemporâneo. Ainda assim, estas técnicas dificilmente redundarão em uma estratégia de controle total sobre a qualidade das populações, afirmam Rabinow e Rose.

O alvo plausível de ser atingido parece ser outro: maximizar a eficiência e os lucros da indústria farmacêutica, beneficiar novos e antigos atores sociais, como pacientes e médicos que militam por um direito amplo a vida, verdade e valores constituídos nas conexões, entrechoques e disputas em plena efervescência em torno da biocidadãnia.

Tudo em meio à produção de necessidades de consumo de uma vida mercantilizada. Um movimento que segue dando curso a ambições ilimitadas, acompanhadas de seus respectivos custos e preços, sociais e monetários, simbólicos e concretos. Ou seja, liberalismo no ocidente e capitalismo, no resto do mundo, se adaptando a novas condições tecnológicas com sua conhecida capacidade de hibridizar-se (John Gray, 2003).

Mas atenção: Muito disso tudo é apenas potência em desenvolvimento. Linhas de bifurcações em aberto. As aplicações práticas podem se mostrar becos sem saída. Tecnicamente inviáveis ou impossíveis para o nosso curto e médio prazo.

Parece que o futuro está além das projeções ambiciosas e totalizantes. Quer sejam projeções de distopias ou utopias, novamente a sugestão de Rabinow e Rose é de modéstia. Aliada a um empirismo (atento e analítico) capaz de avaliar as pequenas mudanças que estão tornando o hoje diferente do ontem.

Referências

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