Utopia Intermitente.
Tenho pensado nessa geração de trabalhadores da saúde e apoiadores do SUS da qual sou parte. Uma geração que agrega uma faixa etária ampla, dos 25 aos 55 anos de idade, em geral. Só podemos dizer que somos de uma mesma geração porque nascemos a partir final dos anos 60, até a retomada do processo democrático durante a distensão da ditadura militar, seguindo até o final dos anos 80. Temos, portanto, em comum o fato de termos sido atingidos de forma indireta pelo período militar e diretamente pela reconstrução das instituições democráticas a partir da constituição de 1988.
No coletivo de apoiadores da PNH somos uma geração de encontros mestiços. Viemos de culturas e camadas sociais que estiveram unidas e separadas por uma trágica história de colonialismo de violenta exploração. Acredito que o tipo de capitalismo tardio brasileiro tem as características descritas por John Gray (2007, p. 175), relativas à “discreta pobreza da burguesia”. Este autor explica este colapso da burguesia, previsto por Marx, ainda no Manifesto Comunista, como um efeito da instabilidade inerente ao sistema capitalista e pela fúria de destruição criativa que nos impele na direção da miragem de um desenvolvimento econômico e moral paulatino e virtualmente sem fim.
Podemos perceber um conjunto de fenômenos ligados ao aceleramento dos efeitos das tecnologias da informação no mercado de consumo e nas relações sociais e seus diversos graus e fatores de coesão. Assim, trabalhadores de nível médio, como eu, que ascenderam ao padrão de consumo de uma imensa classe média (que se converte em mero mercado de consumo no contexto do neoliberalismo) se encontram na trajetória descendente daqueles que são filhos de uma antiga burguesia que já definha como classe, ainda antes mesmo de perder o caráter aristocrático que teve durante todo o Império e a maior parte de nossa República.
Eu convivo diariamente com estudantes, estagiários e residentes que tem o aluguel da moradia, a mensalidade da faculdade e a mesada somando um valor maior do que irão ganhar na primeira década de inserção no mercado de trabalho em saúde. Ou seja, testemunho um exemplo concreto dessa queda da antiga classe média burguesa, em relação mais ao status na pirâmide social do que propriamente ao potencial de consumo.
Intuo que no SUS se encontram estes dois extratos sociais que agora passam a ser uma grande classe média de diversificados patamares e padrões de consumo. Os técnicos em enfermagem de um lado, e os médicos de outro, servem como exemplos paradigmáticos deste processo de proletarização e precarização do Instituto das carreiras profissionais que outrora se estendiam ao longo de uma vida.
Nós, técnicos em enfermagem, nos nichos de melhor remuneração do mercado, diferenciamo-nos apenas no padrão e no patamar de consumo, quando comparados aos profissionais médicos. Se não, vejamos: Todos nós dependemos de uma infraestrutura de serviços que é precária. Esperamos pelo transporte em terminais de ônibus ou de aviões. Porém, cada vez mais em ambos. É nos destinos e no número de embarques que nos diferenciamos. Nas demais fragilidades frente à infraestrutura, somos irmãos de padecimento.
Somente os imensamente ricos estão livres de inconvenientes como as filas ou o pagamento compulsório de impostos. O instituto da diversidade que ordena modos de vida, vínculos de solidariedade e o padrão relativo de bem estar nos autoriza a falar de uma gradual aproximação entre os picos máximos de satisfação de um técnico e o mínimo de realização pessoal e um engenheiro ou, no nosso exemplo, um médico. De modo que em diferentes fases da vida profissional as curvas de bem estar ou de decepção pessoal, traçadas em um gráfico, podem estar unidas nestas duas carreiras. Pode parecer pouco. Mas tendo em vista o Brasil da casa grande e da senzala, dos senhores e dos escravos, não tão distantes no tempo histórico, podemos nos permitir alguma dose moderada de orgulho.
Outro encontro mestiço se dá, feliz e quem sabe acidentalmente, entre usuários e trabalhadores da saúde. De novo uns ascendem ao patamar da cidadania e outros descem da posição aristocrática onde estavam em séculos anteriores. Lembro-me da história de meu avô que vendia terra aos primos para pagar por tratamento médico e de enfermagem. Isso, aqui mesmo, no interior do Rio Grande do Sul, há menos de 50 anos.
Deste infortúnio decorre o êxodo rural que trouxe meu pai para o trabalho urbano e público. E indiretamente, a mim até a capital, inserido em um emergente mercado de trabalho, em lugar da pobreza atávica ou da militância por um pedaço de terra para subsistir.
A tecnologia que dissemina o conhecimento pela internet, ou pela rede geográfica de serviços públicos, tornou uma antiga aristocracia médica, que atendia apenas aos ricos ou muito ricos, em uma espécie de neo-proletariado. Agora, os profissionais da saúde estão diretamente vinculados ao padrão de vida de uma massa populacional que em outras épocas estava relegada a própria sorte.
No entanto, aqui me refiro a um processo que está ligado ao aumento da expectativa de vida e ao padrão de consumo, somente. Não a uma redenção da miséria que existe e persistirá. Sublinho apenas o fato que um catador de material para reciclagem pode ganhar mais de um salário mínimo, ocasionalmente e possuir um telefone celular, frequentemente. Agora há uma rota para sair da miséria. Ela está precariamente aberta. E, apenas em um fortuito momento em que interesses de classe convergem, na democracia, no rumo do combate a miséria. Como de hábito, esta condição pode se mostrar precária ou ser insuficiente. Lembremos a lei áurea e a eficácia de seus efeitos que dispensa maiores comentários.
Mas então é que penso na nossa sorte. Nós que nascemos a partir da segunda metade do século XX e que hoje trabalhamos, constituímos e mantemos nossas famílias como trabalhadores do SUS. A fortuna e virtude nos Estados Unidos do Brasil têm suas especificidades em comparação com os Estados Unidos do Norte.
Em meio a um cenário internacional de colapso ambiental e de crise de escassez energética, o Brasil consegue manter um Estado de Bem-estar Social (Welfare State) trôpego, mas socialmente eficiente e provisoriamente legitimado em sucessivos processos eleitorais. Descobrimos potenciais reservas de gás natural e petróleo sobre a Camada pré-sal de forma afortunada. Provavelmente até a década de setenta desenvolver tecnologia nesta área era apenas uma aposta de alto risco. A nosso favor está a virtude em pesquisar e desenvolver a capacidade de extração em alto mar, aliada a pré-ciência de garantir a soberania brasileira nas águas oceânicas onde este petróleo pode ser extraído comercialmente.
Até o início deste surto de desenvolvimento iniciado na era FHC e eficientemente conduzido nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva, sempre vi a eficiência dos Europeus como efeito do sofrimento pedagógico vivido na primeira e segunda grande guerra. Recentemente John Gray (2007, p.176), afirmou que “o Estado de bem-estar social foi um produto colateral da Segunda Guerra Mundial. Na Inglaterra o Serviço Nacional de Saúde começou no tempo da Blitz” – como são chamados os intermináveis dias de bombareio sobre a população civil de Londres.
O Rio Grande do Sul passou por todo o século XX tendo como grande aventura militar a revolução de 30, em que impomos a ordem varguista ao restante do país, e a luta pela legalidade defendendo a posse de Jango por ocasião da renúncia de Jânio Quadros. Fora isso, 1893 foi nosso ultimo ano de sangue. Uma guerra civil, violentíssima, onde centenas de prisioneiros de ambos os lados, Chimangos e Maragatos, foram degolados nos coxilhas de Cruz Alta e região. Resultou que este surto de violência fraticida forjou a unidade em torno de Getúlio Vargas em 1930, como podemos ler na obra de Érico Veríssimo (1962, p. 688). Nosso charme revolucionário no século XX se resume a Brizola de metralhadora em punho no palácio do governo defendendo a legalidade. Depois, os anos de chumbo.
Nossa ditadura militar foi traumática e severa. Manchas torturadas nos fizeram dançar desequilibrados e bêbados, entre o exílio e a resistência armada. Sim, formos “as feras feridas” que escaparam com vida. A etiqueta que rotula uma tragédia é sempre falseável. A dor nossa é sempre a mais relevante, especialmente quando se sente na carne e na alma a tortura.
Mas nossa geração não foi torturada. Com sorte, alguns de nós foram alunos de combatentes que sobreviveram aos anos de chumbo. Ou, melhor ainda, dos que fizeram a resistência na França e estiveram nas ruas em 1968. Mas nossa dor, se comparado à ditadura na Argentina com seus 30 mil desaparecidos políticos, foi significativamente menor. Além disso, nosso dia seguinte à ditadura foi mais apoteótico e significativamente celebrado. Nas ruas, na fundação do PT, na retomada dos antigos partidos de esquerda e na inscrição dos termos da reforma sanitária na carta constitucional de 1988, nosso dia seguinte tem se mantido relativamente ensolarado.
De outra parte, a Argentina viveu mais do que manchas torturadas e suas feras feridas talvez tenham sido quase extintas. O final da ditadura cobrou sua moeda em sangue na Guerra das Malvinas. Já, o dia seguinte, depois do fim da ditadura, não foi um dia ensolarado. O retorno à democracia, para Los Hermanos, não foi melhor que o nosso.
Segundo John Gray “Depois da intervenção do FMI, a argentina é um exemplo de desenvolvimento reverso. A grande classe média que já teve está arruinada” (2004, p. 60). Comenta-se que desaparecerem os cães vira-latas nos arredores de Buenos Aires durante a depressão dos anos noventa. Para uma economia que no início do século XX foi grande exportador de carne e era, entâo, um dos países mais ricos do mundo, a simples insinuação de que proteína animal canina foi consumida durante a crise dos anos 90 é humilhante.
A partir dos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki encerra-se oficialmente a segunda Guerra Mundial e começa o período da guerra fria. O sequestro de populações das grandes cidades europeias, norte-americanas e soviéticas durante a guerra fria é uma realidade crônica que não sabemos como dimensionar. A estratégia de manutenção da paz entre as potencias soviéticas e norte-americanas em todo a tempo que durou a guerra fria, baseada na garantia de mútua aniquilação, foi praticamente ignorada pela população das grandes metrópoles brasileiras.
Lembro-me de quando durante o governo Reagan, um grupo de cientistas anunciou que o inverno nuclear que se seguiria a um confronto atômico entre as URSS e EUA poderia significar o fim certo da civilização e possivelmente a extinção da espécie humana. Pela primeira vez pareceu-nos que um conflito entre capitalismo e comunismo poderia realmente nos atingir aqui na América do Sul.
Enfim, foi por esse olhar de política comparada, aliada a um ceticismo metódico, que pensava nossas mazelas sociais, corrupção endêmica e iniquidade, como falta de certo tipo de sofrimento pedagógico que eu parecia conseguir entender nosso subdesenvolvimento.
Eu achava que faltava algo. Pensava que éramos uma sociedade e um Estado jovem. Hoje, Lula é o cara e nós parecemos não aceitar a infelicidade como inerente e recorrente a condição humana.
Ou seja, o diagnóstico mais certeiro está em algum lugar mais distante em termos teóricos. Distante do credo iluminista, distante dos mitos religiosos que se insinuaram para dentro dos ideários liberais e estatizantes. Nossa fé no progresso e no desenvolvimento econômico e social linear é apenas uma fé.
Muita água, além da escolha racional, move o moinho da história. Não há um paraíso idílico para onde possamos retornar. O mito escatológico do apocalipse deverá retornar com muita força nos próximos anos. Especialmente, se o passado pode ser uma fonte de informação mais segura do que a pueril utopia.
Em questões de saúde pessoal aprendemos, como trabalhadores da saúde, que raramente há opções certas, ou pelo menos isentas de algum grau risco, quando se trata de prover nossa segurança e nosso prazer. As duas coisas, segurança e prazer, teimam em não se reconciliar.
O inusitado encontro de mestiços da aristocracia e do brasileiro pobre e miserável não é o resultado de uma inexorável marcha para o desenvolvimento que leva ao fim da história e a redenção dos conflitos humanos.
Simplesmente não sabemos se nossos filhos poderão habitar o hiato de estabilidade que aproveitamos ao longo de todo o século XX. Os ganhos que obtivemos em termos de garantias institucionais e individuais são ainda incipientes e demasiado recentes. A tolerância racial e religiosa, sempre suspeitas e mais formais do que concretas, podem degenerar seriamente como vimos insinuar-se na disputa presidencial de 2010.
Como a crise ambiental irá nos afetar durante o curso do século XXI, da vida de nossos filhos, portanto? Será que seremos prudentes ao educa-los? Saberemos recuperar as dolorosas memórias de nossos avós a respeito do século XIX que perdurou, em termos sociais, no interior do Rio Grande do Sul até meados dos anos 50?
Poderemos preveni-los de que a anomia que habita as mentes confinadas nos guetos sociais do entorno de nossas grandes cidades pode, como já virou senso comum, se disseminar pelos condomínios gradeados em que moramos? Saberemos, já que não podemos viver de outro modo, criar sentidos para viver que nos afastem da anarquia e da anomia?
Perguntas pertinentes. Pois é realista e plausível esperar que a violência e a crueldade humana prossigam se perpetuando. Já que parece que como afirma John Gray: “Nada é mais humano do que a disposição para matar e morrer para dar sentido a vida” (2011, p. 278).
Nossa ânsia por colocar um sentido no lugar do caos que se instala num mundo que abandonou a fé “na alma de um mundo sem alma” e trocou o ópio coletivo pela estase da viagem efêmera da pedra nossa de cada dia é um guia confiável. Dele poderemos sempre esperar uma distopia a cada modesta utopia que se realiza sem que sequer nos demos conta.
Referências:
Gray, John. Cachorros de Palha: reflexões sobre humanos e outros animais. 5ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2007.
__________ Al-Qaeda e que significa ser moderno. Rio de Janeiro: Record, 2004.
__________MISSA NEGRA, RELIGIÃO APOCALÍPTICA E O FIM DAS UTOPIAS. Rio de Janeiro: Record, 2008.
Rolnik, Suely. Cartografia Sentimental, Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 1989.
Veríssimo, Érico. O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3º Tomo. Porto Alegre: Globo, 1962.
Por Rejane Guedes
Caro Marco.
Esse é mais um dos posts que saboreio sem delongas.
Cada paragrafo é um convite ao desenferrujamento do pensamento. Cada idéia é um manancial de reflexões.
Fiquei a me perguntar o porque dos poucos comentários nos últimos dias aqui na RHS. Não satisfeita com as hipóteses usuais da falta de tempo, da correria do fim de semestre, das múltiplas atividades que se sobrepõem no cotidiano, busquei a resposta em minha ‘reação’ a esse seu post.
Inicialmente as imagens escolhidas mexeram com minha ‘programação mental’, desarmando-me. (Que bela escolha!)
A seguir o ‘sabor’ texto: Denso e ao mesmo tempo palatável, com sutilezas que deslocaram algumas noções para dimensões de outras compreensões.
Isso me faz muito bem. Tira as teias dos porões e desencrosta as camadas endurecidas ou entorpecidas.
Mas, faltam-me palavras para comentar na devida profundidade que o texto merece. Desse modo, fico aqui no plano do sentir, esperando que as idéias metabolizem-se.
Saudações de uma fã de seus escritos.
Rejane.