Reencontrando a canção: uma visita a Seu Francisco
Encontrava seu Francisco sentado na cadeira de balanço de frente à janela que dá para a cancela. Cancela que dá para a estrada.Estrada que leva à cidade para onde há muito seu Francisco não vai.
Com esforço, de olhos sempre fechados, os ouvidos puxam as lembranças das imagens que se desentendem nesse tempo de quase nove décadas vividas. Assim pode ver os passarinhos cantando lá fora, o frescor vindo do mato, o chão molhado da serra, a água corrente entre as pedras e o ronco do carro que passa distante a cada três horas. Sua irmã sentada ao seu lado, o acompanha na apreciação da paisagem. Na visita usual, artrite reumatóide, deficiência visual e auditiva, dificuldade de deambulação são palavras re-escritas registradas no prontuário. Algum tempo depois da verificação da TA, ausculta, exame físico e prescrições, alguém da equipe conta que, quando criança, muitos saíam de casa para ouvi-lo tocar sua gaita. A irmã relatou que após sangramento nasal que o levou a consultar um otorrino, seguiu rigorosamente a recomendação do especialista: há catorze anos não tocava a sua gaita e até desfez-se dela presenteando um parente. Alguém pergunta em tom alto para que ele possa escutar: sente saudade, seu Chico? Ele direciona o rosto à voz e responde com os olhos fechados: SIM! Muita, muita saudade! Aprendera a tirar sons sozinho, devagar, mas quando gostava de uma canção, não sossegava enquanto não a tocava "todinha". Lembrava o poeta Fernando Pessoa: E a melodia que não havia se agora a lembro faz-me chorar.
No dia seguinte, a equipe encontra Seu Francisco e a irmã diante da janela. A mesma cena e uma sensação de que nada acontecia por ali. Ao entrar, a médica ansiosamente põe um objeto em suas mãos: "Trouxe uma coisa pro senhor!" Ele o apalpa de uma ponta a outra; reconhecendo a velha parceira, a agarra com os olhos marejados e canta alto, com cara feliz de menino quando ganha um brinquedo novo: "Eu vou pra lua, eu vou morar lá"…
Leva a gaita aos lábios; continua a canção tocando-a inteirinha. Acho que Manoel de Barros diria: “cigarra que estoura o crepúsculo que a contém”. Mas era também uma manifestação de alegria; algo com cheiro de aurora. Abstrações ganhando formas. Seu Francisco pegara a música do ar e das coisas lá de fora; inseria na música tudo o que havia colhido naquela janela; tudo o que precisava para expressar o seu mundo.
Seu Francisco arrumou-se, foi à cidade. Como quem sai para exibir a antiga namorada reencontrada, foi brilhar na abertura da conferência municipal de saúde do local.
Este “caso” foi minha irmã Michela (a médica de Seu Francisco) quem me contou. Depois de interrompê-la por duas vezes em um de seus plantões para colher mais algumas das informações por telefone, registro aqui , ao meu modo, para compartilhar com os amigos da RHS.
Quanto à Conferência Municipal, ela me contou que foi a mais bonita que já viu. No meio do discurso de abertura do secretário de saúde, Seu Francisco, com a gaita na mão, não aguentou esperar sua vez de se apresentar; começou a tocar ainda na platéia sendo rapidamente conduzido ao palco. Ele queria “tirar o desconto dos catorze anos que ficou sem tocar”, conta ela. Conta também que sempre sentiu Asa Branca como um lamento, mas naquele momento, era um caso de amor: um longo beijo de reencontro seguido de um alegre passeio pela lua…Eu vou pra lua, eu vou morar lá…
Enfim, sabendo que minha irmã vai mostrar este escrito a Seu Francisco, a ele dedico um trecho da poesia de Manoel de Barros:
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância
de ser feliz por isso.
Meu quintal
É maior do que o mundo.
32 Comentários
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Amiga Clariceana,
Queria dizer o mais importante, mas o que realmente importa fica além do dizer escrito; queria saber compor músicas… Sempre tenho a sensação de não ter sido fiel à força e a beleza das pessoas que encontro nessa vida…
Convoco Clarice:
O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo. Acho que o som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita são como a música…
Grande beijo,
Jacque
Por Cláudia Matthes
dá vontade de cantar baião…
Que linda história de vida!
Cláudia Peju <.> Hu Abrantes
Claudinha,
Receba Asa Branca
Do rei do baião para a rainha dos afetos de Peju
caminhos que se cruzam
Do Nordeste para o Sul
Com muito carinho,
Jacque
Por isso vale tanto esse espaço: pra falar das coisas que não cabem em prontuários!
Há uma arte nesse teu jeito de contar histórias, Jacq. Parabéns e obrigado!
Abs,
Pablo
Por Rejane Guedes
A arte poética da narrativa de Jacque atraiu o grande Pablo. Realmente ela consegue reaproximar aqueles que ousam se permitir degustar a música das palavras.
Pablo. Você, assim como o Erasmo, fazem falta por aqui.
Façamos da história desse encontro do homem e sua gaita, a nossa própria história de encontro da sensibilidade com a capacidade de agir em sintonia com nossas partes fragmentadas.
Tenhamos Dias Fortes nesse quintal maior do que o mundo.
Rejane.
Reje, realmente tenho sido mais tímido em minhas manifestações (seja como post ou comentário). Mas saiba que acompanho quase tudo por aqui! Além disso, olha quem anda concorrendo com vocês aí em baixo…rsrsrs. O moleque não é mole não, nem Morfeu segura!!! É a alegria da minha vida, e lá na frente terei muito orgulho de mostrar essa Rede a ele….
:.
Querido Pablo,
Quanta alegria trouxe a este post! Como se não bastasse a emoção de aparecer por aqui com palavras tão bonitas, trouxe consigo o menino Pedro! No meio do post tinha um Pedro…rs. Parabéns pelo filho lindo!
Palavras que não cabem nos prontuários transbordam nas nossas andanças pelo SUS, nos nossos encontros pela vida e nesse espaço aberto que é a RHS.
Fiquei muito contente de reencontrá-lo. Seu retorno já fez o post valer à pena!
Grande abraço,
Jacq
Pablo,
Vc é nosso querido companheiro. Mas não é bajulação dizer que teu filho transmite uma vitalidade e uma beleza transbordantes! São os Dias Fortes chegando…
Iza
Que anda aparecendo sob a forma relâmpago!
Oi jacque,
Me encantei com a história do Seu Francisco e com a forma de relato. Uma historia de sofrimentos, limitações, mas também, de superações, afetos, (com)paixão, compromisso com a vida e com a profissão. Me deu ate´ vontade de conhecer os protagonistas. Bem que poderias postar uma foto dos dois.
Esse e´ o SUS que todos queremos! Um SUS com uma atenção que vá além das evidências, do dito, do biológico. Uma atenção que promova vida em todas as suas dimensões.
Parabéns para o Seu Francisco, que apesar de tudo, não perdeu o encanto pela vida! Parabéns a sua irmã pela profissional implicada com a qualidade de vida!
Um grande abraço!
Emilia
Emília querida,
Não trouxe a foto que pediu, mas trago com muito carinho algo que certamente vai gostar: a música de Ary Lobo que Seu Francisco tocou.
Querida amiga,
Apesar de todas as dificuldades, fazer atenção básica ainda pode nos proporcionar encantamento. Profissionais como Michela fazem a diferença. Parabéns pelo belo relato!
Beijos,
Lurdinha
Oi, Lurdinha!
Relendo o seu comentário e o de Pat, lembrei de acrescentar tags ao post! Parece que a nossa missão é seguir acrescentando, reinventando, resistindo…
Grande beijo, obrigada pelo comentário!
Jacqueline
Por Shirley Monteiro
Belos Recantos deste chão potiguar, a casa tão iluminada de Bouganvilles, e tanta força de Vida nos anos que passam lentos … em Martins ??
A poesia da arte de contar historias, propria da nossa Jacque, e o encontro com tantos amigos RHS neste Post !!
Novidades atualizadas, com a arte sempre lembrada.
Este post é um grande encontro com a Vida !
Bjos a todos, que aqui estão !!
Jacque nos presenteie mais vezes, não deixe de escrever por aqui !!
Shirley.
Oi, Shirley!
Sabe que quando vi a foto com os bouganvilles lembrei de você?Estes da foto são em Martins no trajeto para Serrinha onde mora Seu Francisco, mas os encontros nesse post parecem estar cheinhos deles!
O tempo parece estar mais veloz e não estou conseguindo acompanhá-lo, por isso, estou publicando menos. Mas já penso em escrever sobre algumas inventividades que estão surgindo no Panatis; bouganvilles teimosos de diversas cores florescendo…
Acho que você vai gostar, aguarde!
Grande beijo,
Jacque
Me deparei com o teu post no hospital hoje e fiquei triste por não poder comentá-lo no ato lá. Porque chorei de emoção…vc conhece a manteiga derretida, né?
De novo o problema de não conseguir me logar naquele computador crazy!!!
Iza
Conheço sim! Não me esquecerei… Somos duas derretidas; também fiquei muito comovida ao ouvir essa história.
Grande beijo,
Jacque
que consegui chorar numa reunião de editores na USP. Lembra?
Iza
Para que gentes de todos os quatro cantos lessem!
Por jussara paiva
Vcs(Jacqueline e Micheline), formam uma bela dupla de contadoras,cantadoras e encantadoras de mentes e corações.Como é bom ouvir além do estetoscopio, ouvir com o coração…Como dizia o peota o essencial é invisível aos olhos….Mais uma vez obrigada por me tirar do estado de letargia em que me encontro….saudades de vc e Michela, sadades do serrambi, onde a lua não adentrava a sala, mas adentrava os nossos corações, onde sonhávamos com uma casa que nos permitisse ver a lua…conseguomos a casa e quase não vemos a lua…rsrs Beijos
Oi, Ju! Belas lembranças! Vamos morar na lua? rs
Fico contente quando entra na RHS para comentar. Aproveite para participar da pesquisa de Lílian: o que significa a RHS para você?
Grande beijo da amiga de sempre,
Jacqueline
Por patrinutri
Jacquelinda!
Muito demorei a escreve por conta dos olhos marejados cada vez que olhava a imagem de seu post e a convocação de seu Francisco á sensibilidade diante da vida que passa, mas só termina no seu próprio tempo.
Tenho duas vozinhas de 90 anos, uma benção! Acreditem vó materna e parterna com quem tive o prazer de conviver durante toda minha vida, uma que me ensinou a respeitar as costureiras, habilidade que nunca consegui exercer apesar de seus esforços e outra que me ensinou o prazer de cozinhar para a família, vê-los reunidos sem pensar no quanto é um trabalho árduo, pois vale o que se apresenta, a comida que nos deleita e a reunião que nos potencializa a alma.
Fiquei pensando o quanto um profissional de saúde que não se vincula adequadamente a um usuário pode fazer-se mal, mesmo sem querer, por dar uma instrução pouco contextualizada. Privar alguém de sua música! Que poder é este que assumem esta pessoas donas da saúde do outro?
Certa vez conheci uma senhora no ambulatório que me disse tomar 10 tipos diferentes de remédios que ela não sabia muito bem pra que serviam e porque tomava e que isto já fazia mais ou menos 10 anos e nem sabia se ainda precisava tomar por que não voltou mais naquele profissional e os outros que ela consultou só iam acrescentando novos sem perguntar dos antigos.
Claro que pedi a uma colega da equipe que fizesse uma revisão sobre isso, conclusão: passou a tomar apenas dois medicamentos continuamente. Fico pensando nos efeitos destas drogas a que esta pessoa esteve submetida por tantos anos…
Que bom que seu Francisco encontrou Michaela!
Que bom que alguém da equipe lembrou de sua música!
Que bom que a clínica foi ampliada!
Que bom que seu Francisco foi a cidade!
Que bom ver esta porteira aberta para mundo!
Viver 9 décadas tem que ser um presente, não pode ser uma vida que se arrasta sobre a terra, mesmo que a vitalidade juvenil ainda não seja possível no corpo, a alma tem que ser livre!
Saudades de meus avôs que já se foram!
Saudades do acolimento de todos os cachorros vira latas da cidade…meu avô materno.
Saudades da histórias de pedro Malasartes…meu avô paterno.
Patrícia S C Silva
Blumenau SC
Por Rejane Guedes
Querida Pat.
Se o post é lindo, sua narrativa evocando a memória dos avós está maravilhosa.
Você sentou na cadeira da Tenda do Conto (ver outros posts da Jacqueline Abrantes) e nos presenteou com uma história de respeito, de amorosidade e de lição para manter viva a chama da esperança.
Há tempos venho me perguntando sobre as transformações das pessoas e dos sonhos das pessoas. Encontro nesses exemplos um novo combustível para acreditar que é possível nutrir a esperança em práticas menos burocráticas e mais humanas.
É muito bom sentir o pulsar do sangue nas veias cibernéticas de uma rede. Torço para que esse pulsar contagie outras redes, outros coletivos, outras mentalidades. É por essas e outras que sou fã da Redehumanizasus.
Abraço caloroso, como se ouvisse as histórias do Pedro Malazartes, contadas por nossos avós queridos.
Rejane.
Querida Pat,
Que maravilha ler o seu relato! A lembrança das avós ensinando a costurar e cozinhar…Tinha que resultar nessa tecedora de redes supernutri!
E os questionamentos que traz acerca das posturas rígidas e prescritivas que adotamos diante dos idosos negligenciando suas vontades, desejos, vozes.
Transcrevo aqui dois trechos de sua "fala" que mais me emocionaram:
"a sensibilidade diante da vida que passa, mas só termina no seu próprio tempo."
"vale o que se apresenta, a comida que nos deleita e a reunião que nos potencializa a alma."
Revi você sentada na cadeira da foto que Rejane oportunamente postou aqui. Obrigada, amiga, por partilhar conosco mais um pouco de você!
Um terno abraço,
Jacque
Por patrinutri
Agora foi minha vez de imprimir e levar para meu grupo!
Em breve conto a todos o impacto desta leitura no grupo de humanziação por aqui.
Bjs Pat
Querida Pat,
É tão gratificante ver que nossas palavras escritas mobilizam de algum modo!
Aguardo os resultados da leitura.
Beijos,
Jacque
Nossa lindo lindo lindo, me emocionei ao ler me senti dentro da história e não pensei que poderia ser tão linda a intervenção parabéns a você por compartilhar e relatar de forma tão tocante e a Michela pelo lindo trabalho. E principalmente ao seu Francisco por dar tão linda lição de que ali ainda há vida para além da doença.
Abços
Thatiane,
Seu comentário é lindo! Sim! Há arte, há poesia e vida além da doença; somos todos protagonistas: autores e narradores de nossas próprias histórias.
Grande abraço,
Jacque
Por michela abrantes
A mágica das palavras
A reunião que acolhe semanalmente nossas angústias e histórias de incansáveis caminhadas, descansou orgulhosa com a mágica das palavras que só Jacqueline sabe espalhar. Em versão digitalizada, projetada na parede da unidade, fizeram brilhar os olhos ao perceber que podemos transformar pequenos gestos diários em páginas na internet, com adorno de comentários gentis, militantes solidários de uma causa que nos faz tão próximos.
Pedi a todos da equipe que tecessem impressões sobre o texto lido, as quais reuni para um comentário conjunto:
" A equipe é para Seu Francisco a força que o faz viver e voltar a tocar sua gaita com mais entusiasmo do que antes. Com a volta de seu instrumento, acredito que ficará curado de várias doenças, principalmente das maiores que são a solidão e o preconceito." ( Dona Lourdes )
"…levamos sempre em conta nas nossas ações a solidariedade e a vontade de melhorar vidas."( Jair )
" Dizem que a música é transformadora, mas acrescento que o SUS também pode ser…transformador, modificador, contribuinte e até companheiro. O que falta é só atitude para que toda melodia sonhada não acabe morrendo de onde nunca saiu. A equipe do SF tem sido a gaita de muitas pessoas nesta cidade." ( Emanuele )
" Que bom perceber que a humanização está presente na equipe na qual trabalho, pois através de Seu Francisco pude me emocionar, refletir e sentir que podemos de fato tornar possível a humanização no SUS, no dia-dia, dentro de cada um de nós." ( Edinea )
" Saber que a simples ação de lembrar das pessoas e de seus gestos e costumes pode mudar a realidade em que vivemos, dá a certeza de que ainda há muito a fazer…"(Fabiana)
"… foi um ato de bravura e determinação para toda a comunidade."(Pequena)
" Conseguimos que Seu Francisco reencontrasse sua gaita, saísse para o mundo e tocasse as músicas que ele mais gostava." ( Elvinho)
" Seu Francisco nos mostrou que a ação do tempo que lhe enrugou o corpo não lhe roubou o encanto pela vida." ( Claudinha)
" Admirei a coragem de Seu Francisco que pode levar um exemplo para as pessoas que ficaram em casa, se achando doente e impossibilitado de viver." ( Edna Queiroz)
" Às vezes, saio triste das visitas em domicílio por ver vidas paradas como uma flor que a cada dia vai murchando, a ideia de trazer Seu Francisco à Conferência de Saúde foi poder regar um pouco essas flores." ( Edna Barreto)
" Faremos tantos outros Franciscos felizes, mostrando a importância da inclusão social e da prática do que nos dá prazer." ( Sayonara)
" Exercendo seu direito de viver no meio da sociedade, Seu Francisco se achou uma pessoa feliz." ( Marcondes)
Por fim, esperamos contribuir com muitas outras histórias, de flores, de gaitas, de serras, de reencontros,de SUS!
Micheline Abrantes
Por Luciane Régio
Amo esses posts feitos assim, com as histórias vividas! Que alegria foi dada ao Seu Francisco, vendo suas palavras ditas para o país… tem noção a dimensão? Não só do ato generoso, Jacque, mas desse pedaço de amor partilhado nas redes da vida da gente…
Grande beijos, com muita admiração!
Lu
[…] vai seu Francisco, a menina do cartaz, o homem que gosta da música do “Silvio Santos” e as orquídeas no […]
Por Rejane Guedes
Jacquelinda!
Você nos presenteia com uma história que fala sobre o resgate da autonomia, a alegria e contagia aqueles que se permitirem ouvir a música das palavras.
Que belo fruto do encontro das irmãs Abrantes.
Abraço comovido. Re.j.e