Trilogia da crise. Parte I
Nesta série seguirei um percurso que interroga nossos movimentos aqui na Rede Humaniza SUS a partir de algumas leituras que remetem as nossas particularidades aos grandes temas que ocupam alguns dos mais relevantes pensadores deste início de milênio. A ideia é alternar as reflexões sobre o global e o local, sobre o Brasil e o Mundo, a indústria da guerra e a do cuidado, sobre as intermitências do SUS e a extensão de nossos fluxos de afetos em rede. Comecemos com Alain Touraine. Uma boa leitura aos passageiros desta caminhada reflexiva.
Subjetividade, sujeito e o fim dos atores sociais.
Parte I
Em Após a crise – A Decomposição da vida social e o surgimento de atores não sociais – de Alain Touraine (publicado pela editora Vozes neste ano e em 2010 pela Éditions du Seuil, na França) encontro amparo para as reflexões sobre a comunidade de subjetividades em movimento que nos caracteriza. Especialmente as reflexões sobre o padrão dos comportamentos de gênero que servem de rastilho de pólvora para investigar mais profundamente as interconexões de sujeitos humanos e da energia de afetos que se instituem na Rede Humaniza SUS.
Touraine centrando uma audaciosa hipótese – a do surgimento de atores não sociais, na esteira da mega crise financeira que assola o mundo com seu pico em 2008 – 2009 e que segue em seus desdobramentos nesse exato momento – nos convida a pensar a economia de um ponto de vista sociológico. Desafia os economistas que alardearam na esteira da hegemonia liberal que se instaurou no final do século XX a assumirem que as “leis” da economia se alçaram sobre a sociedade pós-industrial causando a falência da eficácia das instituições da sociedade nos termos que as temos conhecido até então.
A primeira idéia defendida no livro é a de que estamos entrando em uma era em que os atores sociais perdem sua relevância num mundo em que a economia produtiva é amplamente suplantada pela economia especulativa. Neste momento de crise Touraine observa o silêncio social que pode estar a incubar uma reação violenta de parte das vítimas da crise financeira. Touraine considerara as semelhanças desta crise com a de 1929 e avalia o risco de recairmos no populismo e no totalitarismo que marcaram a primeira metade do século XX.
Outro desdobramento da crise é o possível surgimento de atores novos que permaneçam autônomos frente à estrutura econômica e alem disso, capazes de lhe fazer enfrentamento. Porém estes atores se elevariam acima da esfera social, acima do jogo dos grupos de interesses que nos acostumamos a chamar de atores sociais. O conflito de classes, conduzidos por atores sociais internos ao sistema econômico, mais precisamente, o capitalismo, seria suplantado pelo enfrentamento entre “o sistema econômico, sobretudo quando ele se reduz à busca da maior lucratividade possível, e os atores que recorrem aos direitos humanos e ao respeito às pessoas” (página 13). Mais do que desejável esta possibilidade é a aposta moral e ética de Touraine.
O sociólogo da ação frente aos grandes esquemas estruturalistas, volta ao tema da autonomia e ao papel fundamental dos sujeitos como resultado da ação dos indivíduos que ao se fazerem humanos em igualdade de direitos, se constituem em sujeitos capazes de engendrarem um mundo que subsista a crise do sistema financeiro. Crise que é mais uma face da crise ambiental que convoca a todos os seres humanos em sua dimensão mais pessoal e mais universal: a persistência da humanidade e da civilização em meio aos sombrios cenários possíveis a partir das mudanças climáticas para as quais nos alertam os cientistas.
A crise da sociedade capitalista, em minha modesta leitura do texto de Touraine, é o colapso do grande sistema de seguridade social que emerge na reconstrução da Europa no pós-guerra. A saúde, a educação e a seguridade ficaram a cargo dos Estados, ao passo que os atores sociais, na arena política e econômica, ficaram a disputar a empregabilidade, os salários e as condições de vida.
A partir dos anos 70 o recuo da intervenção do Estado coincidiu com uma ruptura na forma de remuneração dos quadros gestores das grandes empresas. Os mercados se abriram e os méritos dos executivos migraram para a arena global, fora das legislações de cada nação. Semelhantemente ao crime organizado, o mercado financeiro global se decolou do âmbito social e digeriu os atores sociais em função de seus interesses e cálculos de busca do lucro a qualquer custo.
Na página 26 sob o título de “O declínio da sociedade masculina” eu encontro a pista para a questão colocada por Dani Matielo ao meu post sobre a inserção dos gêneros nos debates da RHS. Touraine interroga:
“como não perceber (…) o declínio de um mundo feito mais de dinheiro do que de máquinas e produtos? Um mundo escondido, mas todo poderoso, onde, como na corte palaciana dos reis, o esplendor se avizinha ao vício, não aquele do sexo, mas aquele do lucro desassociado por sua rejeição a todos os limites e normas."
É uma imagem forte que, segundo, Touraine “disfarça completamente a ascensão das mulheres que dominam o consumo no sentido mais profundo do termo, quase se confundindo com a criação”. No entanto, dessa criação resulta apenas miséria e desolação. Os criadores da sociedade da informação, quase sem recursos, dos intercâmbios e das trocas,
“dos debates levados pela Internet a todos os domínios da experiência humana! Técnicas criativas de uma civilização na qual as mulheres buscam recompor uma experiência humana há séculos polarizada entre a elite conquistadora e as populações depauperadas e subjugadas. Aqui também após tantos sucessos e largos avanços, as sociedades industriais se aniquilam num impasse, e suas riquezas passam as mãos de especuladores indiferentes a todas as ordens de criação e invenção.
Aqui, além da referência ao potencial criativo das mulheres que muito me ajuda no entendimento de nossas tr@ans-@bordagens, a referência à apropriação dos recursos tecnológicos pelos interesses do mercado financeiro internacional me traz a mente o cartão SUS.
Desde meados dos anos 90 que nosso sistema bancário utiliza a numeração de seus clientes como instrumento de acúmulo e tratamento de dados. Opera vinculando o número da conta bancária ao CPF do cidadão e ao cartão de crédito. Tudo redunda em uma espécie de prontuário informatizado que registra os mínimos detalhes das movimentações de milhões de correntistas em nosso país.
Já a idéia de dar aos sujeitos que sustentam o SUS um recurso que vincula as informações sobre o fluxo de atendimentos (dentro de uma rede de atendimento mais distribuída no território dos municípios do que a do sistema bancário) hiberna há cerca de uma década. Os recentes movimentos na direção de um sistema de controle das ações de atenção ao nível praticamente pessoal, como é o caso do prontuário eletrônico, causam estremecimentos tectônicos em grande parte de nossos colegas.
No entanto, tal mudança é apenas um reflexo atrasado da constituição cidadã de 1988. A tecnologia da informação é apenas mais um bem de civilização. Similar às técnicas cirúrgicas, aos sistemas de transporte público ou o conjunto das ações de saúde que cabem ao Estado. O estatuto que o cartão SUS confere ao sujeito usuário é quase que banal. Mas é um empoderamento significativo que efetiva nossa condição específica de trabalhadores da saúde e servidores públicos, sem prejudicar nenhuma de nossas outras especificidades: de gênero, de cidadãos, de usuários simultaneamente, entre tantas outras…
O fato de que quase simultaneamente a sua invenção os recursos das tecnologias da informação foram tornados instrumentos do sistema financeiro especulativo é atestado pelo desaparecimento dos desfalques ao caixa dos bancos (quem se lembra do termo?) feitos por trabalhadores do sistema financeiro. De modo que agora só podem roubar bancos o crime organizado e os grandes executivos. Irônico, mas revelador da apropriação dos bens coletivos em consequência da globalização financeira.
O cartão SUS corresponde a um movimento em direção a igualdade de direitos que se eleva sobre o jogo dos interesses dos atores sociais, seguindo e dando consequências as proposições de Touraine. Ou seja, um princípio que se eleve acima da arena social que foi aniquilada pela globalização da especulação financeira: O Sujeito portador dos direitos humanos e a Subjetivação. O triunfo do capitalismo especulativo fragilizou os atores sociais, sindicatos, movimentos sociais e programas de partidos ao ponto de torna-los inertes e silenciar perigosamente as massas excluídas.
Seguirei tratando dos demais capítulos do livro “Após a crise” para só depois tratar das “44 cartas do mundo líquido moderno” de Zygmunt Bauman e finalizar com uma breve resenha do romance de James Ellroy, “6 mil em espécie”.
Por Rejane Guedes
Marco, és um ativista do pensamento…
Seus posts produzem abalos tectônicos que provocam movimentos em muitas direções.
Recorto um fragmento para iniciar esse diálogo, que promete diversas contribuições.
"… estamos entrando em uma era em que os atores sociais perdem sua relevância num mundo em que a economia produtiva é amplamente suplantada pela economia especulativa."
As palavras proferidas por Touraine e escolhidas por você, trazem à cena, com muita pertinência, a constatação de que essa contemporaneidade está sendo composta pela multiplicidade. Esta multiplicidade, por sua vez, se dá pelos ‘jogos de poder’ , nos quais a condição de DIZER é dada pelas posições sociais (cada vez mais fluidas) e não mais pelas classes sociais do materialismo histórico-dialético. Quem diz algo o faz com uma vinculação a diversas influências. Não há, neste sentido, discurso ingênuo. Quem diz, diz porque escolhe dizer aquilo em que acredita (ou pensa acreditar), aquilo que lhe confere prazer ou vantagem (as vezes até a dor é um prazer ou, num sentido mais radical, uma ‘compensação’).
Num contexto contemporâneo de produção imaterial – bastante favorável ao capital especulativo – a incrustração de imagens e idéias nas mentalidades de indivíduos e de grupos de indivíduos possibilitam a sustentação de conceitos, de paradigmas, de atitudes, de racionalidades, que justificam ações, ponderações e mediações, com efeitos benéficos ou perniciosos, encobrindo interesses nem sempre evidentes.
O setor saúde não está isento desta lógica. O controle a partir dos sistemas de vigilância (às doenças, à alimentação, às condições dos ciclos de vida etc) é , a meu ver, uma verdadeira ‘caixa preta’ (ver Bruno Latour) da ciência da saúde. Seguimos os protocolos, muitas vezes sem questionar os porques de suas existencias.
Como no mito da caverna de Platão (na qual os homens só viam sombras da realidade), alguns ousaram sair da caverna, mas parece que os que ainda permanecem nas trevas – iluminadas por tênues luzes suficientes apenas para projetar as alegorias do pensamento sobre a realidade – ainda não estão prontos para dar ouvidos àqueles que anunciam outros modos de pensar, de agir e de viver.
Você deixa 2 motivos para aquecer meus miolos neste domingo arejado:
– O silêncio como forma de expressão de algo maior;
-A condição de ser um ‘surfista’ das ondas nesta conjuntura cibernética de jogos de poder, de saber e de verdade. (como bem poderia dizer o instigante Foucault, se ainda estivesse por aqui).
Agradeço pela instigação. Com carinho, Rejane (Re.j.e)