A iniquidade como sinônimo de desigualdade: crime e “castigo”, mas não muito.

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Um tributarista gaúcho afirma que o Brasil é um país de impostos altos e insuficientes. Delfim Netto afirmou, acho que no final da era FHC, que simplesmente não há recursos suficientes no PIB brasileiro para pagar os direitos inscritos na constituição de 1988. Não sei se depois do surto de crescimento econômico da primeira década do milênio ele ainda sustentaria a mesma posição. Parece que o bolo finalmente cresceu. Lembrem que no final dos anos 70 o mesmo Delfim disse que antes da justiça social deveríamos fazer a economia desenvolver-se. Mas não se avista no horizonte a hora tão sonhada da partilha e da justiça social.

Continuamos a viver em um Brasil bipartido: um mundo dos pobres e outro, dos ricos. Mas como na casa grande e na senzala um não pode existir sem o outro: Bairro rico próximo ao gueto, de onde vêm as faxineiras, babás e traficantes que tanta desigualdade sem um entorpecente ninguém aguenta. Na saúde não é diferente.

Neurocirurgiões que ganham talvez 300 mil reais por ano, (ninguém apresenta os dados exatos) em hospitais públicos, realizam cirurgias em parcerias com instrumentadores que ganham menos de 1000 reais por mês. Talvez seja uma desigualdade mais intensa, mais visceral, perversa e desnudá-la serve ao impulso assassino de extinguir nosso sonho intenso em berço esplêndido.

O pacto social brasileiro, nossa paz e justiça social, em última instância estão fundados nos direitos iguais e garantias fundamentais inscritas na constituição brasileira. Mas pode se considerar que as garantias ao acesso à saúde são os mesmos se o orçamento da saúde é distribuído de forma desigual e em direção aos locais onde estão sediadas as elites profissionais e acadêmicas e os centros urbanos?

Tem realmente o mesmo valor a vida de um paciente que é atendido em um hospital em que o técnico em enfermagem ganha menos de 800 reais do que a do cidadão que é atendido em um hospital em que o técnico em enfermagem ganha em torno de 2000 reais. A segurança e a qualidade no atendimento podem ser a mesma com tal diferença na remuneração? Lembremos que o trabalho em saúde, seja do médico, seja do auxiliar de higienização é sagrado e protegido pelo mistério mais profundo da humanidade que é o fato de seres humanos, conscientes de si e de sua finitude, cuidarem de outros seres humanos.

Os pobres no Brasil, os que ganham até 1500 reais por mês, arcam com a maior parte dos impostos recolhidos no país. Temos um sistema universal de saúde, o SUS, por onde se operacionaliza a atenção integral à saúde em todos os níveis de complexidade. No entanto o sistema complementar de saúde recebe mais dinheiro do que o SUS para atender uma população menor. Seus clientes pagam por conveniência de consultório e hotelaria em internações hospitalares. Os demais serviços como urgência emergência e trauma são cobertos com dinheiro público pelo SUS. A luta para restituir aos cofres públicos o lucro indevido dos planos de saúde tem sido inglória e ineficaz.

O sistema de saúde complementar seria algo como um sistema de mercado privado, operando e concorrendo em um mercado livre, complementando, para quem pode pagar uma saúde de “mais” qualidade.

Não é.

Na verdade as elites e as classes média-média e alta (que pagam um valor significativo de impostos, mas ainda inferior ao valor global pago pelos pobres) têm incentivos em renúncia fiscal para aderir a planos de saúde privados que lhe oferecem algum conforto em termos de espera por consultas com especialistas e realização de exames.

Mas a desigualdade não para por aí. O mercado de trabalho em saúde para profissionais da saúde de nível superior é uma porta de entrada para os diversos níveis e padrões de consumo das classes médias brasileiras. Claro, entrada para os emergentes e nicho confortável para àqueles que já nasceram remediados ou em berço de ouro. Sempre que vou a encontros de saúde mental, conferências e outros eventos das áreas da saúde, encontro os professores universitários e seus alunos.

Considero esta uma das melhores realizações do SUS: Vincular todos os brasileiros a partir de obrigações e direitos, de prestação de serviços e exercício da cidadania, sem considerar as origens sociais de cada lado do balcão.

Hoje, devido à constituição de 1988, a vida de milhares de trabalhadores da saúde está vinculada a evolução dos indicadores de saúde da maioria da população brasileira, portanto dos pobres inclusive.

Bem, como a desigualdade parece uma escada com intermináveis degraus, os profissionais médicos se beneficiam de um senso comum forjado ao longo de vários séculos e tomaram conta do topo do mercado de trabalho em saúde. Seus privilégios legais e ilegais são superiores aos de todos os demais profissionais de nível acadêmico na saúde.

No período da redemocratização do país, em meados dos anos 80, a transição do antigo sistema de saúde para o SUS gerou vários tipos de conflitos e desinvestimentos no serviço público. Com as sucessivas crises inflacionárias dos governos Sarnei e Collor os gestores adquiriram um hábito pernicioso. Não podendo investir nas folhas de pagamento dos servidores públicos, passaram a liberá-los do cumprimento da jornada de trabalho contratual.

Havia de tudo na época em que os instrumentos democráticos da constituição de 1988 estavam se afirmando. Leis que davam aumentos de salários para servidores apaniguados, incorporações de gratificações que levaram operadores de “veículos horizontais” a ganharem mais do que governadores de Estado…

Mas a tradição de cortar horas da jornada é uma chaga que permanece. Desde o final dos anos 90 tenho observado como persistentemente procuradores do Ministério Público tem lutado para restabelecer a lei e a letra dos contratos de trabalho no serviço público. Existem instituições públicas que contam com técnicos de nível acadêmico por apenas meio turno ou cerca de 4 horas por dia.

Enquanto isso os servidores de nível médio se desdobram em turnos de trabalho para dar conta do atendimento 24 horas. Cobrar o dano ao patrimônio público nos últimos 20 ou 30 anos é impossível. Nenhum servidor médico, para ficar no exemplo mais óbvio, teve uma hora sequer de trabalho faltoso descontado. Nenhum coordenador técnico ou administrativo emitiu uma só punição. Nunca os tribunais de contas emitiram que se tenha notícia, alguma advertência neste sentido. Ao contrário, os Conselhos Municipais de Saúde tem apontado a redução de jornada para todos os trabalhadores da saúde em no máximo de 30 horas semanais.

Várias categorias tem legislação em tramitação ou já aprovada limitando a jornada a um máximo de 30 horas semanais. Existem vários regimes de trabalho. O mais usado por ser o que opera mais próximo ao limite tênue entre segurança e produtividade é o de 36 horas semanais para os profissionais que atendem regimes de atendimento de 24 horas e 40 horas semanais para os setores administrativos.

Os trabalhadores da saúde da Secretaria Municipal da Saúde de Porto Alegre estiveram em greve. Exigiam a regulamentação da jornada de 30 horas semanais. Recentemente os médicos assinaram um acordo em que por lei municipal ascenderam a um plano de carreira em que foram modificadas as jornadas de trabalho com opções para 20, 30 ou quarenta horas semanais. Sem redução de salário. O ingresso em um Posto de Saúde da Família garante um salário inicial de pelo menos 10 mil reais. No entanto, um médico especialista pode receber mais do que isso em uma jornada menor. Nenhum teve redução de salário. Todos tiveram aumento salarial.

Agora os servidores de nível médio e de outras profissões de nível superior estão lutando pela regulamentação de uma carga horária de 30 horas. Pela proposta da prefeitura só poderão fazê-lo se abrirem mão do adicional de Regime de Tempo Integral – RTI e o de Regime de Dedicação exclusiva – RDE no caso dos servidores de nível acadêmico.

Como era de se esperar em nossa tradição de produzir desigualdade com recursos públicos, o plano de carreira dos médicos aumentou a desigualdade:

– um médico ganha em um mês mais do que a maioria dos demais servidores ganha em um ano inteiro de trabalho. Isso vale para médicos em inicio de carreira. Mas se repete nas comparações entre os profissionais em final de carreira.

Essa forma de gestão fere de morte o SUS e contraria a constituição. Igualdade e equidade são pressupostos para a atenção e cuidado para com o usuário. Mas um mínimo de equidade na forma de remunerar as categorias e profissões que atuam na área da saúde é uma condição imprescindível. A atual discussão dos pisos mínimos nacionais para trabalhadores da educação e da segurança pública seriam oportuníssimos se viessem a ser debatidos no SUS.

Não se questiona a diferença salarial em princípio. O desejável seria que com o desenvolvimento econômico todos os trabalhadores da saúde tivessem melhorias salariais e de condições de trabalho. Mas a dimensão atual da desigualdade consiste num tipo perigoso de privilégio. Seja no tratamento salarial, seja nas cargas horárias, tal discrepância num setor financiado com recursos públicos só pode vir em prejuízo da segurança e da saúde dos contribuintes.

Afinal o universalidade e a equidade na atenção atendem a um princípio de justiça e igualdade social que vale também para as relações entre as profissões na equipe multidisciplinar de saúde. Oitenta por cento das ações de saúde são realizadas por profissionais não médicos.

Com este nível de injustiça social o Brasil vai ficar ainda pior no ranking internacional das desigualdades sociais. Ou somos um país pobre e repartimos igualmente os custos da miséria ou somos ricos e a renda e a proteção do Estado devem beneficiar a todos.

Meu alerta é de que muito provávelmente viremos a passar por depressões econômicas ao longo deste século. Neste nível de desigualdade social que está emergindo do saque aos bens financeiros do desenvolvimento econômico (iniciado com muitos custos em termos de concessões às elites na era FHC e consolidados nos governos Lula e Dilma) viveremos períodos de anomia e convulsão social.

O perigo é que em uma crise de escasses de insumos e direitos básicos trará estragos ainda mais intensamente do que os surtos que já aprendemos a banalizar em nosso cotidiano. Será algo pior do que temer assaltos ou ter de erguer a perna para passar ao lado e ao largo dos moradores de rua.

Como vimos na Europa recentemente, mesmo pessoas bem alimentadas podem se revoltar diante da falta de bens não essencias a sobrevivência mas simbolicamente significativos, como celulares e roupas da moda.