Um encontro com os indígenas em Barra do Corda-Ma: um dispositivo de mudanças no hospital

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O Hospital Infantil Lucídio Portella-HILP, localizado em Teresina, pela sua proximidade com o estado do Maranhão, atende mensalmente uma parcela significativa de crianças e adolescentes indígenas, o que tem fortalecido os vínculos com a CASAI/FUNASA local.

Em 2007, por conta da iniciativa  https://redehumanizasus.net/4189-rede-no-berco-acolhendo-as-diferencas-culturais implantada no HILP, tendo em vista acolher as crianças que possuem a cultura de dormir em rede, sobretudo, as indígenas, em respeito às diferenças socioculturais, um grupo de profissionais do hospital foi convidado pela FUNASA para conhecer a aldeia indígena “Escalvados” da etnia Canela, no município de Barra do Corda, no estado do Maranhão.

A equipe foi integrada por, Emília (assistente social),  Leiva (médica), Alessandra (Psicóloga), Niomisia (nutricionista), e quatro funcionários da Fundação Nacional de Saúde-FUNASA.

 O município de Barra do Corda fica localizado no centro geográfico do Maranhão, e dista 350 km de Teresina. A cidade possui aproximadamente 8.600 índios, entre eles os da etnia Guajajara e Canela.

 A viagem durou dois dias e meio, com pernoites numa pousada em Barra do corda. Na manhã seguinte da nossa chegada, seguimos rumo a aldeia indígena “Escalvados”, localizada a 70 km do município, por uma estrada corroçal estreita, que mal cabia um veiculo na horizontal. Fomos distribuídos em duas camionetas. A paisagem, por onde passamos, era uma verdadeira festa para os olhos, com uma variedade de  árvores frutíferas, como cajueiros, mangueiras, pequizeiros, jaqueiras que ora se alternavam com seus galhos tocando os veículos como numa saudação. Durante o percurso, fizemos algumas paradas pra descanso e saborearmos as mangas, cajus, tirados do pé, tudo fresquinho, bem como, pra empurramos os veículos que ficavam atolados na areia, pois em alguns trechos, o areal  era muito  denso. Chegamos na aldeia por volta do meio-dia. Lá nos dirigimos para o posto de saúde, onde fomos recebidos pela enfermeira do posto e por algumas lideranças indígenas. Enquanto preparávamos uma macarronada para o almoço, vimos um grupo de mulheres indígenas passando para tomar banho num riacho que ficava próximo. À medida que percebiam os nossos olhares, elas se escondiam por trás dos pequizeiros. As mulheres, como vestuário, usavam apenas uma canga, uma espécie de sarongue enrolada na cintura, sem a parte superior e alguns adereços, como colares, brincos e pulseiras, confeccionados por elas mesmas, com penas de animais, sementes e fibras. Depois do almoço, seguimos para um encontro com as lideranças indígenas e demais índios. Somente os homens participaram. As mulheres não têm permissão para participarem das rodas de discussões/decisões indígenas. Na aldeia, as funções são bem definidas. Os homens trabalham na lavoura, na caça, pesca, e na administração da aldeia. As mulheres cuidam dos filhos e dos serviços domésticos. Na aldeia, foi realizada uma grande roda, onde o foco da discussão  foi  a cultura e o cotidiano da aldeia, os problemas e desafios enfrentados. Um dos maiores problemas ressaltados foi relativo à saúde, pela dificuldade do deslocamento dos indígenas para a busca do tratamento. No posto de saúde da aldeia recebem apenas um atendimento básico. Uma vez por semana recebem a visita de um médico, e contam ainda com o trabalho de uma enfermeira, e três Canelas Ramkokamekrá, parcialmente formados para indicarem remédios, aplicarem injeções e soro. Os casos mais complexos são tratados  em São Luis e ou em Teresina. Dizem preferir Teresina, pois acham que o atendimento é  melhor. Perguntamos como enfrentam a realidade da internação hospitalar, tendo que conviverem com hábitos culturais tão diferentes dos deles. Falaram que é  muito difícil , não só pela dificuldade da linguagem, como também por terem que se vestir e se alimentar como os “brancos”, que além da diferença, ainda seguem horários preestabelecidos. “Na aldeia não tem hora certa pra comermos, comemos na hora que sentimos fome”, acrescentaram. Também reclamaram sobre a norma de ficar apenas um indígena acompanhando a criança. Esclareceram que na aldeia, quando uma criança adoece, ela não pode ficar sozinha. Na saída da mãe e ou do pai para fazer qualquer atividade, tem que ficar alguém tomando de conta da criança, “para que o espírito dela não seja levado pela morte.”

No hospital, até  então, eram freqüentes os conflitos na internação dessas crianças, pois os pais sempre queriam ficar acompanhando em conjunto, o que não era permitido. Em alguns casos, diante da proibição, os pais  se recusavam a permitir a internação do filho, oportunidade em tínhamos que recorrer à intervenção da equipe de profissionais da Casa do Índio, sediada em Teresina. Ainda sobre a alimentação, esclareceram que quando uma pessoa tem um dos integrantes de sua família nuclear doente, ela precisa submeter-se a restrições alimentares e sexuais para ajudar na recuperação do doente. E uma dessas restrições é o consumo da carne de galinha, e no hospital, esse é um dos alimentos mais freqüentes no cardápio. Certa vez, uma criança Canela foi submetida a um procedimento cirúrgico no hospital, e no dia seguinte ficamos sabendo que o pai/acompanhante passou o dia todo sem se alimentar, pois tanto no almoço, quanto na janta, foi servido carne de galinha e ele não aceitou.

As informações e experiências compartilhadas pelos indígenas foram importantes para um maior conhecimento e respeito da cultura desses povos. A partir dai, passamos  a ampliar o olhar sobre esses indígenas, entender e acolher as suas peculiaridades.  O acesso ao atendimento hospitalar tem sido mais facilitado, com  ampliação da escuta, com maior implicação profissional,  e vinculo afetivo. Atualmente, além da permissão para dois acompanhantes, quando necessário, são disponibilizadas cangas para uso das indígenas, bem como, a equipe de nutricionistas tem buscado  ofertar um cardápio alimentar adaptado as  necessidades desses usuários, disponibilizando refeições menos secas, incluindo banana e farinha, produtos  que segundo eles, não podem faltar na alimentação diária. Tal realidade, além  de ter fortalecido os vínculos com os indígenas, também tem garantido o respeito às diversidades socioculturais, produzindo assim o protagonismo e o bem-estar desses sujeitos no âmbito hospitalar.