EDUCAÇÃO, SAÚDE E CIDADANIA NO CONJUNTO PANATIS : PARTILHANDO EXPERIÊNCIAS E APRENDIZAGEM

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Pensando a formação em saúde…
A Universidade Federal do Rio Grande do Norte na busca por mudanças na formação profissional dos seus graduandos dos diversos cursos de saúde instituiu em 2000.2 a atividade integrada de educação, saúde e cidadania (SACI). Tal atividade é fruto da necessidade do novo paradigma da atenção à saúde, discutido desde a década de 1970 com o Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, que dentre as diversas discussões levantadas, destacou a necessidade de transformação na formação do profissional de saúde. O processo de formação dos recursos humanos para a saúde encontrava-se vinculado ao modelo flexineriano, de base hospitalocêntrica, marcado por forte incorporação tecnológica, pela excessiva medicalização e caracterizado pela fragmentação do conhecimento e pela dicotomia teoria-prática, não tendo relação com o contexto sócio-sanitário e com foco nas ações curativas.
A disciplina SACI, portanto, contempla as propostas de mudança na formação, configurando-se em um processo de ensino-aprendizagem voltado para o estímulo às práticas interdisciplinares, ao trabalho em equipe e a articulação ensino-serviço-comunidade, possibilitando a inserção precoce do aluno em cenários de aprendizagens reais e, ainda, oportunizando ao aluno uma visão crítica da realidade. A SACI, ao trabalhar os problemas com a comunidade por meio de ações de saúde e cidadania, tem estimulado a participação de docentes, estudantes, profissionais de saúde e da comunidade nas atividades programadas.
A metodologia utilizada prioriza princípios pedagógicos da Escola Crítica, com uma abordagem problematizadora, a qual estabelece o papel do orientador como o facilitador do processo ensino-aprendizagem, e compreende o aluno como sujeito ativo.
Aproximando-se da perspectiva freireana de educação (FREIRE, 1996), a SACI enquanto componente curricular multiprofissional na formação em saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Norte fomenta o permanente movimento entre ação-reflexão-ação ao ofertar, no fluxo dos momentos pedagógicos, momentos de vivência partilhada dos conteúdos a partir do estudo de um dado território adstrito a uma Unidade de Saúde da Família.
Para tanto, a disciplina é desenvolvida em algumas etapas principais, quais sejam:
• Estudo da realidade – Que consta de momentos exploratórios pelo território previamente mapeado e que consiste na observação da realidade social, econômica e cultural na comunidade do território adstrito às Unidades de Saúde da Família;
• Organização dos dados da Realidade – Que consta da formatação do diagnóstico da situação do território realizado a partir da identificação dos problemas e potencialidades locais, além da reflexão sobre os problemas encontrados com os equipamentos sociais e comunidade;
• Intervenção na Realidade – Que consta da elaboração e execução de um plano de intervenção que trate do problema central da comunidade observado pelo grupo, elencado e construído em partilha com a comunidade.
A dinâmica que envolve este componente curricular, acreditamos nós, desenvolve a autonomia do aluno, o seu reconhecimento como agente de transformação social, além de favorecer a formação de uma consciência abrangente, planetária que consideram a vida como fundamental.
A SACI é, portanto, um experimento bem sucedido que reflete os avanços no debate sobre as diretrizes de formação na área de saúde por sua característica multiprofissional e interdisciplinar. Alunos de vários cursos, sob a tutoria de um professor, se deslocam do cômodo espaço dos bancos universitários para compreender a realidade social da população de perto.

Conjunto Panatis: território de aprendizagem
O conjunto Panatis localiza-se na zona norte de Natal e seu território faz parte do Distrito Sanitário Norte I da capital potiguar. O conjunto faz parte do bairro do Potengi, caracterizado por ser de classe média e classe média baixa, sendo considerado melhor qualidade de vida de toda a zona norte (BARROSO, 2003).
A Unidade de Saúde da Família que cobre este espaço é sediada em prédio próprio e em bom estado de conservação, localizado na Rua da Pimenteiras, s/n. Esta Unidade atualmente abriga quatro (04) equipes da Estratégia Saúde da Família que trabalham de forma articulada.
Na experiência da SACI na comunidade do Panatis, objeto deste relato, os alunos estabeleceram contato com a comunidade através dos passeios exploratórios o que permitiu a compreensão da realidade social e a identificação dos problemas que acometem aquele território: carência de médicos e equipes de saúde que atendam toda a população; falta de medicamentos na USF; ausência de equipamentos sociais; trabalho infantil; criminalidade acentuada; saneamento básico precário; acúmulo de lixo em vários espaços; carência de transportes e deficiência no acesso à unidade de saúde; uso e tráfico de drogas; entre outros.
Estes momentos de mapeamento da realidade foram importantes na medida em que promoveram no grupo uma apropriação concreta do cenário social que valorou uma consciência ampliada do processo saúde-doença que a população deste território vivencia, não somente ligados aos aspectos biológicos, mas imbricados aos fatores da dinâmica social (LAUREL, 1982). O acesso às informações no reconhecimento do território privilegiou caminhos democráticos para pensar os conhecimentos pertinentes a cada área de formação da saúde.
Contudo o movimento de encontro com a realidade necessitou de um olhar interrogante que vai além da detecção do dado coletado, mas insiste em perceber sua razão de existência. Freire (1979, p. 29) nos esclarece ser esse o papel do desvelar a realidade criticamente num processo tão contínuo e dinâmico quanto a própria realidade. Nas palavras do autor:

 

Os temas da realidade mesma possuem tendência a serem mitificados, ao mesmo tempo que se estabelece um clima de irracionalidade e de sectarismo. Este clima ameaça arrancar dos temas sua significação profunda e privá-los do aspecto dinâmico que os caracteriza. Numa tal situação, a irracionalidade criadora de mitos converte-se, ela própria, em tema fundamental. O tema que se lhe opõe, a uma visão crítica e dinâmica do mundo, permite ‘desvelar’ a realidade, desmascarar sua mitificação e chegar à plena realização do trabalho humano: a transformação permanente da realidade para a libertação dos homens.

 

O grupo tutorial do conjunto Panatis, formado por professores e alunos da área de saúde da UFRN, permitiu-se não limitar a leitura superficial da realidade. Dentre tantos problemas levantados uma percepção singular foi despertada durante as reuniões realizadas pelo grupo com os profissionais de saúde e a comunidade: a consciência de que muitos dos problemas enfrentados pelo bairro têm uma origem comum, a falta de envolvimento da comunidade, ou seja, a ausência de participação social, um dos princípios organizativos do SUS. Portanto, escolhemos a participação como tema para o nosso projeto de intervenção e partimos para a ação.
Realizamos entrevistas com as pessoas da comunidade do Panatis, na intenção de compreender suas percepções sobre a participação e também como estratégia de sensibilização para a temática. Na fala da comunidade, os sujeitos se colocaram como meros expectadores das questões que afligem a elas próprias. Pareciam estar “fora”, culpabilizando as instâncias governamentais, o médico, o outro, mas nunca se colocando como personagem relevante na proposição e execução de mudanças.
Entendemos que os princípios do SUS que se refere à participação social, naquela comunidade, está longe de ser efetivado. Por isso, insistimos no tema. Ainda que de forma pontual, iniciamos um processo de sensibilização, por entendermos que a participação social no processo democrático permite a reafirmação dos direitos sociais e garante a proteção social contra abusos.
No SUS, a participação social pode se dá de duas formas legalmente instituídas: a partir de Conselhos de Saúde e, em maior instância, nas Conferências Nacionais de Saúde. Em primeira instância, as pautas são abordadas nos Conselhos de Saúde e levada, então, para as Conferências regionais e nacionais, onde haverá uma discussão maior sobre os Rumos da Saúde no Brasil.
Visamos, portanto, a partir do nosso projeto de intervenção, aproximar a comunidade do conselho gestor da unidade, por entendermos que esta é a maneira mais fácil e rápida de oportunizar o acesso à participação dos mesmos nas discussões e decisões das ações de saúde. Para tanto, iniciamos o processo de formalização do conselho, elegendo os integrantes da comissão eleitoral e providenciando junto à Secretaria Municipal de Saúde os trâmites legais para a sua efetivação.
Em nossos encontros contamos com trabalhadores da saúde, usuários do SUS, estudantes de saúde, representantes de organizações comunitárias locais e representantes de as Secretaria de Saúde de Natal, além de representantes de outros equipamentos sociais do bairro. Dentes encontros ficaram deliberados os seguintes encaminhamentos:
1. Inclusão na pauta na Secretaria Municipal de Saúde a discussão sobre a criação do conselho local de saúde do Panatis.
2. A sugestão de que a discussão sobre participação social continue com as outras turmas da SACI.
3. A sugestão que a sensibilização da participação social seja articulada com o trabalho desenvolvido pelo Siqueira (Dentista de uma das equipes do ESF do Panatis) “5 minutos pelo SUS”.
4. Sugestões de criação de outros conselhos, não só de saúde.
5. Foi retirada a comissão eleitoral composta por dois trabalhadores da saúde e dois representantes dos usuários.

Os desdobramentos ainda estão por vir, pois a persistência em legitimar o processo de construção de consciência de responsabilidade coletiva pela gestão da Saúde é o que nos move. A SACI espera poder continuar contribuindo para que a USF do Panatis seja, cada vez mais, um espaço privilegiado no acolhimento dos usuários do SUS.

Referências
BARROSO, Arimá Viana. Mapeando a qualidade de vida em Natal. Natal: Secretaria de Planejamento e Gestão Estratégica de Natal, 2003.
LAURELL, Asa Cristina. La salud-enfermedad como proceso social. Revista Latinoamericana de Salud. México, 2, pp. 7-25. 1982.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
 

Autores:

Ms. Allyson Carvalho de Araújo
Departamento de Educação Física (UFRN)
Ms. Roxane de Alencar Irineu
Departamento de Fonoaudiologia (UFRN)