Crianças de tres anos seriam “bombas ambulantes”? – quando o cientificismo encontra a política securitária

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O projeto Espaço Palavra e o Núcleo de Crise da PUC – SP convidaram a médica francesa Christine Davoudian para uma conversa em terras tupiniquins. A troca de experiências entre países tão diferentes como Brasil e França poderia desembocar em conclusões infrutíferas do ponto de vista do desejo de produzir parcerias de práticas e pensamento. Mas o que se produziu neste encontro alegre foi exatamente o contrário, guardadas as devidas proporções e diferenças.

A realidade em saúde num país de primeiro mundo deve ser muito diversa daquela que vivemos por aqui… pensava eu, uma típica portadora do "complexo de vira-latas" de que nos acusava muito apropriadamente Nelson Rodrigues. O saudoso e insuperável cronista da vida brasileira não se surpreenderia com a dose de "comunidade" que existe entre nós e a França. Coisas do mundo globalizado?

 

Christine é médica no Centro de Proteção Materno-Infantil de Saint Dennis, distrito da maravilhosa cidade-luz. Trata-se de um equipamento que conta com psicólogos, assistentes sociais, enfermeiras, parteiras, puericulturistas e outros profissionais afins. As mulheres imigrantes, grávidas e "sem papéis" – na condição de ilegalidade no país – são as suas pacientes, o que revela a reserva de honra e dignidade que ainda há em sua profissão. Mas, Sarkosi promete literalmente, num lance de total desrespeito humano, acabar com os hospiais públicos e com o "espírito de 1968", diz Christine. 

Mulheres sozinhas, geralmente portadoras do HIV e sem visibilidade do ponto de vista de cidadania, consideradas portanto como "transgressivas", seriam as novas figuras da imigração. Algumas buscam refúgio das guerras em seus países, onde se encontravam em situação de abuso e risco de vida. Em muitos casos, a gravidez foi resultado de estupros praticados por militares no país de origem. São haitianas, congolesas, negras em busca de um destino menos mortífero.

 

Sensibidade e delicadeza no trato de questões tão vitais para essas mulheres – como a perda de laços familiares, a chegada de um filho, a solidão, a fome, o medo – evidenciam-se na abordagem construída coletivamente no Centro. E a intensidade que marca tais situações-limite torna-se ferramenta de trabalho que contagia a equipe na sua própria relação e na relação com as pacientes. A mesma intensidade afetiva nos toma ao assistir o filme, que foi estrategicamente feito com o intuito de mostrar o testemunho de outras possibilidades de trabalho preventivo do resgate de identidades e cidadania. Enquanto o governo aposta em programas preventivos, medidos quantitativamente segundo os critérios pseudocientíficos da "medicina baseada em evidências"… No lugar do encontro sinistro do cientificismo com as políticas de seguranca pública, recheadas de preconceito, produzem-se os bons encontros que devolvem a palavra aos sujeitos e compartilham a construção e reconstrução de sua história.

Uma grande diferença a ser enfatizada entre os dois países é, sem dúvida, a questão da formação dos "pedo-psiquiatras" na França. A maioria é também psicanalista, embora a psicanálise esteja sendo alvo de uma espécie de perseguição pela onda biologicista que assola o mundo globalizado. Não foi à toa que os estudos e pesquisas encomendados por um grupo responsável pela prevenção de delinquência em crianças de idade precoce ( 3 anos!!! ) tivessem a nacionalidade inglesa e canadense. Estudos franceses estiveram ausentes por justamente questionarem as conclusões ideológicas desta iniciativa do novo eugenismo das práticas de avaliação incessante a que estão expostas as crianças de nossos "novos tempos".

 A recente investida da prevenção e tratamento de supostos distúrbios de comportamento e aprendizagem em nosso país, com a produção em massa de um grotesco programa em escolas públicas, de forma indiscriminada e amparada por leis, é um exemplo da ‘zona de vizinhança’ das práticas pautadas pelo biopoder.

 

Deixo o relato, já bastante longo, por hoje e volto em outro post onde continuo tentando reproduzir as palavras e utopias possíveis que Christine costura com tão belas linhas de fuga.

 

Iza Sardenberg

Coletivo de Editores/ Cuidadores da RHS