Diálogo sobre Acolhimento e Classificação de Risco

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Em artigo enviado ao Coletivo Nacional esta semana, o consultor Altair Massaro “levantou a bola” de uma discussão que tem sido recorrente na auto-avaliação que a Política Nacional de Humanização faz acerca da implementação e dos resultados gerados por seus dispositivos: trata-se da questão do Acolhimento em seu duplo caráter de princípio e dispositivo da PNH.

É possível falar em Classificação de Risco sem falar em Acolhimento? O emprego de sistemas de triagem, a exemplo do Protocolo de Manchester, é suficiente para assegurar um atendimento humanizado? Há uma tendência em oferecer ao problema da Classificação de Risco uma resposta meramente técnica, instrumental? Que implicações político-metodológicas isso traz para a Política Nacional de Humanização? Perguntas como estas pautaram o debate, que despertou o interesse de diversos consultores da PNH.

Confira, a seguir, o artigo de Altair Massaro e o debate que se desenrolou via e-mail a partir do texto.

O ARTIGO

Acolhimento e Classificação de Risco: para que serve?

Quando se fala de humanização na produção em saúde, parece haver um discurso predominante onde se deve mudar o foco das ações do “procedimento” e das “corporações” para uma centralidade no “usuário”. Ora, mas de que estamos de fato falando? Tendo a pensar que há uma hegemonia na formação em saúde, sejam as universitárias ou técnicas, que coloca em evidência, por um lado a localização da técnica nas corporações e, de outro, a finalidade da técnica na produção de procedimentos.

Isto implica sob um primeiro aspecto, toda uma organização baseada nestas duas condições: processos de trabalho com centralidade no fazer tecnológico dos profissionais, acentuadamente nos que dominam as linhas produtivas, no geral médicos e enfermeiros, e no que são capazes de produzir, ou seja, os próprios procedimentos (não é assim que se tem financiado a saúde até agora? – Bem vindas às formas de financiamento por contratos de gestão, onde a qualidade começa a se colocar, mas ainda de forma tímida); um segundo aspecto diz respeito ao uso de todas as outras tecnologias no saber em saúde, que sob este domínio, passa a servir a este fim: sejam os procedimentos diagnósticos, as relações e mesmo os usuários, “instrumentos”, “objetos”, para se chegar o mais eficientemente possível ao procedimento, uma lógica bastante interessante a uma estrutura econômica dominante.

Um movimento no campo da saúde, bastante interessante, propõe se deslocar o foco da corporação para o profissional em saúde e do procedimento ao usuário. Aqui ainda ficaríamos presos a um dualismo insolúvel. O que se destaca, então, é um foco comum que se põem entre estes dois sujeitos, o que há de mais interessante: o encontro. Ora, mais uma boa forma de problematizar então esta mudança de centralidade, uma centralidade o tempo todo móvel e múltipla por natureza (o encontro), é o ACOLHIMENTO.  Não é pouca coisa que se estabelece: acolhimento deixa de ser somente uma ferramenta que opera certo fazer, certo procedimento (como receber os usuários nas unidades) para tornar-se assim um dispositivo onde o que se acentua é todo um modo de existência da produção em saúde (evidentemente não é o único dispositivo, mas um potente, sem dúvida).

Discutir acolhimento assim passa a ter um valor pragmático/conceitual (isto jamais vai se separar) de mudança, tanto no sentido da sua disposição de problematizar as relações estabelecidas e suas implicações como modos de operar a vida (produção em saúde), quanto no sentido de sua própria aplicabilidade na produção deste encontro (aqui sim, quais ferramentas operam este encontro e como usá-las?).

Desta forma, o tema da Classificação de Risco é indissociável de Acolhimento, do ponto de vista de suas potencialidades – afinal, o que significa estabelecer certa ordem de atendimento que prioriza o risco se não se põe, em primeiro plano, a discussão de como lidar com este produto? Se o movimento é apenas eleger certa ordem de atendimento, ainda estaremos na lógica da atribuição de corporações e procedimentos, servindo a Classificação de Risco apenas como mais um procedimento.

Nesta medida, pensar e fazer Acolhimento e Classificação de Risco colocando-se acento na maneira de produzi-lo, ou seja, sua norma, seu protocolo, é menos do que pode estes dispositivos; independente da importância e do potencial de tais protocolos, pois só serão plenamente potentes se o dispositivo também o for.

Quanto ao protocolo me parece que há alguns que tem apresentado elementos bastante interessantes, como por exemplo, o de Manchester, para o caso da Classificação de Risco. As questões que tem me inquietado se referem ao método de aplicabilidade – por que é necessário se filiar a um grupo especifico para utilizar tal protocolo? O fato de pertencer a um grupo que poderia acumular dados estatísticos não me parece ser convincente, já que não há nada que seja unívoco ou universal nesta prática – o que pode interessar dados estatísticos de atendimento na Inglaterra, Portugal etc., se minha realidade tem singularidades absolutas?

Tenho preocupação de estarmos defendendo, em nome de uma possível qualidade técnica, um interesse de grupos específicos em setores públicos (como se já não tivéssemos ataques suficientes) – se não há tais interesses, por que um só grupo no Brasil franqueou os direitos de uso do protocolo? (ao menos essa é a informação que tenho – nada oficial porque não tenho acesso a nenhum destes grupos nem tampouco ao protocolo).

Enfim, para de fato se produzir mudanças no modo de produção em saúde, a abordagem da discussão de Acolhimento e Classificação de Risco tem que ganhar todos os espaços possíveis e não se restringir ao uso desta ou daquela ferramenta, por mais interessantes que sejam. Estas são produtos destas produções e não causa.

   

O DEBATE

As provocações levantadas não tardaram a receber respostas do Coletivo Nacional. A consultora Adriana Mafra foi a primeira a se manifestar:

Adriana Mafra: Altair, meu caro, qual seria então sua proposta além de problematizar? A propósito, sobre Manchester, qualquer médico ou enfermeiro pode usar o Protocolo de Manchester desde que faça o curso de formação e passe na prova. Ele não tem custo no Serviço Público que é o nosso caso. Tomara que consigamos montar um consenso que nos deixe ser mais produtivos. Em Minas Gerais já qualificamos mais de 200 pessoas com o objetivo de termos uma linguagem única em todos os pontos de atenção de urgência e Emergência. Lembrando… Qualquer coisa é melhor que porteiro triando ou atendimento por ordem de chegada!

Cláudia Abbês: Fico muito preocupada quando vejo uma tendência a separar no trabalho da PNH a Classificação de Risco do Acolhimento, pois entendo que a discussão primordial para a PNH não é sobre qual protocolo A, B, ou C é melhor. Os entendidos e estudiosos podem nos indicar isto, em que pese que a adoção de protocolos privados ou restritos a pequenos grupos é algo a ser visto com atenção e preocupação. O que é um diferencial quando a PNH trabalha com isto é o modo de fazer nos processos de trabalho – digo processo de trabalho e não procedimentos de trabalho – pois o que tenho visto em alguns lugares é a implantação, ou demanda de Classificação de Risco e protocolos sem nenhuma modificação, reinvenção, apropriação pelos trabalhadores do processo de trabalho, salvo algumas exceções, dentre as quais Minas Gerais (que tem, há bastante tempo, grande protagonismo na história do SUS), com certeza há outras experiências que não conheço. Portanto, a questão é bem mais complexa. Penso que o Acolhimento tem uma dupla inserção: como diretriz nos modos de se produzir saúde (tecnologia do encontro) e percebo que também há uma função de dispositivo no Acolhimento, conjugado a outros dispositivos, como Clínica Ampliada, Programa de Formação em Saúde e Trabalho (PFST), etc., onde podemos discutir o Acolhimento descolado da restrição à idéia de porta e/ou recepção: a questão do acesso ao serviço (fluxos), a qualidade e continuidade da assistência (fluxo do cuidado), as condições de acolhida deste acesso, organização das equipes, condições de trabalho, análise dos atendimentos da demanda por acesso, tendo como matéria primordial o processo de trabalho. Tenho trabalhado com esta compreensão em unidades de saúde da Atenção Básica e Hospitais, e penso que este processo de discussão, que é lento e não sai na mídia porque sua “ambiência” tem a visibilidade invisibilizada nas práticas de produção de subjetivação e produção de saúde, interfere de modo potente nos modos de se produzir saúde “com”, tensionando e sendo tensionado nos processos de construção de uma gestão mais compartilhada – porque gestão coletiva é uma outra tourada. A importância de ordenação e priorização do atendimento nas urgências e emergências é inquestionável. O que é questionável é, como PNH, pensarmos que protocolos de Classificação de Risco dão conta, sem o acolhimento de organizar rede e práticas de saúde efetivamente inclusivas macro e micropoliticamente. Portanto, não faço coro com a idéia de que “qualquer coisa é melhor do que”, ou mesmo de que os protocolos per si, privados ou não, sejam a saída para os problemas de acesso, sejam eles quais forem – a priorização no atendimento, aos serviços, a qualidade e continuidade da assistência, etc. – pois é com este discurso de que “qualquer coisa é melhor do que” que temos engolido goela abaixo muita coisa. Querida Adriana, não tenho dúvidas da sua enorme competência e experiência em avaliar a qualidade de um protocolo, sua aplicabilidade. Você tem estudado e discutido isto há bastante tempo. A meu ver, não é o Protocolo A, B, ou C que está em questão, em que pese que é imprescindível problematizarmos o acesso aos mesmos. Penso que o mais importante nesta discussão é problematizarmos, sim, nossos modos de experimentar o processo de construção do Acolhimento no cotidiano dos serviços. E aí penso que podemos, com o que aprendemos com o querido Serafa, construir indicadores para monitoramento dos efeitos/produções deste processo.
       

Adriana Mafra: Ah, Cláudia, quero discutir o que fazer e não o que não fazer. Isso já fizemos demais, penso eu. Acho que precisamos de um projeto objetivo, de um plano de ação. Tento associar o jeito PNH de fazer com a objetividade. Daria um bom caldo. Conseguimos muita coisa em Minas. Adoraria passar esta experiência: tiramos as cidades com maior APVP (Anos Potenciais de Vida Perdidos, quanto a população está morrendo antes do previsto) para as com menor índice! Isto associando Acolhimento, Classificação de Risco, melhoria na Atenção Primária, desvio do controle de doenças crônicas dos serviços de urgência para os Centros de Saúde, organização das Redes de Atenção a partir de uma linguagem única (na época o Protocolo do Odilon Behrens), projetos específicos de saúde da mulher e da criança. Incorporar o subjetivo ao objetivo. Problematizar mais operacionalizar. Este seria nosso grande desafio.

Ricardo Vaz: Que bom que essa questão voltou a ser tratada. Cada vez gostaria de saber mais sobre esse assunto. Há material disponível? O Protocolo de Manchester, ou do Odilon, podem ser publicizados? Se puderem, seria ótimo. Juro que tenho muita curiosidade, apesar do “pé atrás” já explicitado em outro email sobre protocolos, linguagens únicas, e sobretudo se esse assunto ficar só com especialistas. Adriana, a coisa fica muito mais interessante quando se mostra articulada/associada às outras estratégias citadas em sua mensagem. Mas também teríamos que avaliar se essa melhora observada em Minas não se deve a muitos fatores, não estando os protocolos como “carro-chefe” do processo, mas sim seu modo de discussão e negociação nos serviços e não necessariamente nos serviços hospitalares, mas de toda rede de saúde. Certamente, também, não podemos ignorar outros muitos fatores que interferem direta e indiretamente nos indicadores de saúde da população. Bom, essa discussão merece fôlego, aprenderemos mais na semana que vem em nossa visita ao Odilon, e esperamos ver de perto esses modos de operar da PNH, o que de fato, me parece estar ocupando a maior parcela dessa questão.

Vera Figueiredo: Ao longo da implementação da PNH aprendemos, nos processos onde temos apoiado, que não se separa Classificação de Risco de Acolhimento, que protocolos são ferramentas e não “carros-chefes”, como demarca Ricardo e muitos outros compas que têm debatido o tema. Continuo participando do processo de construção do ACCR no Hospital Odilon Behrens de Belo Horizonte e gostaria de dizer que é construção e não implantação. Construção que modifica processos de trabalho, que cria para os trabalhadores a experiência do pertencimento ao hospital, que possibilita a reinvenção a cada oficina de avaliação mensal do processo em construção, a partir de ações bem objetivas sugeridas nas rodas do colegiado gestor da Unidade de urgência e emergência. Utilizando o protocolo construído no Odilon Behrens ou adotando o de Manchester futuramente, o que o ACCR vem possibilitando no Odilon – de forma articulada com outros dispositivos em processo, como a Visita Aberta e do Direito a Acompanhantes, o funcionamento dos colegiados de unidades, os Contratos Internos de Gestão – é promover mudanças nos processos de trabalho que têm sido garantidas por quem tem experimentado ser sujeito nesse processo. Há pouco mais de um mês participamos, juntamente com Gastão, de um momento de avaliação da gestão com um colegiado ampliado do Hospital – cerca de 80 pessoas, entre trabalhadores, gerentes de Unidades de Produção e gestoras. O que a cada diretriz do Plano Diretor (2005 a 2008) foi avaliado, foi-se confirmando ao longo da reunião, sua materialidade, traduzida em dispositivos e ações concretas que estão lá e têm sido discutidas por todos os visitantes que têm vindo ao HOB desde o ano passado, apoiados pela PNH, por ser o Hospital uma referência deste SUS que, com todas as dificuldades, possibilita e acolhe nosso modo de fazer e fazer acontecer. O que foi ficando cada vez mais claro é que a sustentabilidade das mudanças promovidas nos modelos de atenção e gestão pode ser possível, uma vez que as grandes linhas de um plano para outra gestão, que pode ocorrer a partir das eleições, vêm sendo trabalhadas no coletivo.

Serafim Santos: Cláudia, Ricardo e Vera (companheiros deste coletivo sudeste que já têm experimentado mais efetivamente a aproximação com a lógica da avaliação) atrelaram o tema da avaliação/indicadores nessa discussão, situação que me “obriga” a emendar a conversa. Farei uma pontuação e desafios bem objetivamente (em linguagem avaliativa).
    Num recente e articulado encontro de pesquisa e avaliação que houve no Hospital Sofia Feldman/BH (hospital-exemplo do SUS que dá certo), foi extremamente importante a receptividade (dos serviços e pesquisadores nacionais de referência) ao que estamos propondo como eixos avaliativos na PNH.
    E o que tem sido considerado “importante”, “estratégico” e “ousado” (como método e potencial de aplicabilidade efetiva) é a “quantidade e qualidade” dos deslocamentos que propomos, não para romper com o que está estabelecido, mas para “superar” o estabelecido.
    1) Os deslocamentos (político-teórico-metodológicos) referem-se a desviar o foco do olhar avaliativo de “resultados tradicionalmente buscados” (necessários, mas insuficientes) e direcioná-lo na perspectiva do “processo e relações de trabalho”, vendo “o que o processo de implementação de um dispositivo produz”, em três direções: (i) no próprio processo/organização de trabalho local; (ii) nos sujeitos/equipes no contexto do processo de trabalho e (iii) e nas repercussões para os usuários.
    2) As dimensões e variáveis dentro dessas direções/focos estariam voltadas para captar e redirecionar: (i) o que se opera de ajustes/regulações nas ofertas/práticas (seus eixos de planejamento para ajustá-las às necessidades locais, provisórias, singulares, vendo se a própria instituição se renova, se configura como singular, diferenciada); (ii) a capacidade de mobilização dos sujeitos/equipes, na perspectiva da grupalidade, interação, integração (capacidade de, a partir do trabalho, tornarem-se equipes, coletivos, criadores, reinventores e/ou validadores das regras, inclusive protocolares, que atendem ao processo e aos sujeitos/redes); (iii) e na dimensão mais clássica (e importante) de reperscussões para os usuários (mas na ótica dos seus modos de vida).
    3) Os indicadores (tão comumente restritos a alguns âmbitos importantes, mas restritos, insuficientes) estariam deslocados e ampliados para incorporar novos objetos e novos objetivos (coisas não pouco ousadas, nem simples!!!) – teriam que refletir: (i) o que permita ver o trabalho e os efeitos que se espera dele trazendo à tona o que o trabalho e o dispositivo está sendo capaz de produzir nas e com as pessoas (os usuários e os profissionais/equipes); (ii) ampliados quanto “ao que olhar” (o que captar) e quanto ao modo de dimensionar; (iii)  ampliados para escapar de uma “medida binária” (como meta alcançada em termos de “sim e não”).

Adriana Mafra: Protocolo não é nada a não ser ferramenta para construção das Redes Assistenciais. O resultado de Janaúba não se deveu ao Protocolo de Manchester, mas à Rede da Saúde da Mulher e da Criança. Janaúba usa como linguagem o protocolo do Odilon, mas agora, com a disponibilidade de Manchester, está migrando. Insisto: protocolo não é nada, apenas ferramenta.

Cláudia Abbês: Se você pensa que o que estamos pontuando é “o que não fazer”, que problematizar (entendido como a potencialização de nossa capacidade de pensar, de criar novas questões, de funcionar a favor dos processos de reinvenção do cotidiano de trabalho em saúde, na materialidade e imaterialidade do processo de trabalho) não é operacionalizar, fica difícil. Desta armadilha de compreender subjetividade versus objetividade, os que pensam versus os que resolvem/fazem, precisamos escapar, pois ela desloca e empobrece a questão. Com certeza você sabe, até porque tivemos oportunidade de trabalhar juntas aqui no Rio, que ofertar protocolos, organizar procedimentos – que você entende como objetivo e resolutivo – se esbarra no que é nosso maior desafio, qual seja: incluir os atores neste processo, construir rede efetiva/afetiva (mais do que entre serviços), ou seja, trabalhar com tecnologia leve, que no meu entender é o que garante mudanças efetivas nos processos de produção de saúde – o que você chama de subjetivo e não operacional. Portanto, não estamos falando a mesma coisa, não se trata de juntar a visão que você traz com o que você chama de modo PNH, pois elas são, pelo menos no meu entender, radicalmente diferentes – e não melhor ou pior, certa ou errada – pois partem de pressupostos político-metodologicos díspares. É preciso enfrentar esta discussão generosamente, sem pessoalizações/desqualificações. Seguimos conversando.

Altair Massaro: Companheiros, um dos grandes problemas da vida nas grandes cidades tem sido o modo como se enfrentar a violência. Ora, parece que nossa polícia tem resolvido isso de forma bastante “eficiente”: ao utilizar uma ferramenta de poder – suas armas de fogo – tem “produzido muitos corpos” (não estou me referindo a “gente inocente”, até porque matar é matar, seja quem for, não é fato?). Mas o que estou querendo forçar a barra, fazendo uma certa caricatura, é como podemos nos utilizar de ferramentas e dispositivos de forma “objetiva”, “produtiva” e “racional” sem levar em conta os processos que acompanham a vida e produzir coisas até mesmo abomináveis: a violência não se combate com violência, mas com “problematização” dos processos sociais – exclusões, falta de acesso, distribuição de riquezas, educação etc.
    Já desculpando-me pela forma abrutalhada de abordar o caso, entendo que o uso dos protocolos, longe de ser inócuo, somente uma ferramenta, pode de fato ser um dispositivo que nos leve a vários lugares. Usá-los sem considerar a “problematização” dos processos de trabalho, sem incluir todas as potencialidades as quais se atravessa, pode produzir distanciamentos, exclusões, enrijecimentos, segmentaridades e rupturas de processos de trabalho que só fazem mais do mesmo.
    Ao contrário, os protocolos como efeitos de situações nas quais a vida se põe em re-invenção, onde há inclusão de atores/inventores/criadores de processos ativos capazes de motivar-se a partir das ações e paixões que os atravessam, tornam aqueles (os protocolos) ferramentas/dispositivos em pressuposição recíproca com estes processos de potencialização, ou seja, penetram-se, passam a ser organizados por estes processos e os organizam ao mesmo tempo, modificam os que neles se inserem e são modificados por eles.
    Assim, pensar o uso de protocolos não é possível sem se preceder por “problematização” dos processo de trabalho, sem inclusão de processos que são ao mesmo tempo subjetivos e objetivos – a dualidade só acontece por ilusão e afastamento da realidade da vida – sem se pôr cada vez mais em relação.
    Talvez esteja “chovendo no molhado”, entretanto acho que esta discussão ainda se faz necessária, mas como diz Cláudia: “generosamente, sem pessoalizações/desqualificações”, para que continuemos a nos colocar em “processos produtivos de realidades” menos do que “implementando tecnologias”.

Rafael Gomes: Fiquei até o momento acompanhando essa discussão como leitor atento e um tanto tímido. Em alguns momentos fui instigado a escrever em outros me sentia satisfeito e “respondido” com as novas colocações, mas como o processo de trabalho tem aparecido recorrentemente fui convocado a tentar contribuir para discussão. Todo trabalho se dá a partir de um debate de normas constante, de um jogo entre antecipações e atualizações diante das exigências e variabilidades da realidade de trabalho.  Dentre as antecipações estão os saberes disciplinares e da experiência, os valores culturais, as prescrições, etc. Um protocolo, como prescrição da forma como trabalhar, é resultado do acúmulo de saberes e conhecimentos e tem papel fundamental para a realização das atividades, bem como para o seu desenvolvimento. Portanto como já foi dito aqui, que venha o que se julgue mais eficiente. Tenho certeza que a PNH tem profissionais extremamente competentes para decidir qual a melhor ferramenta. No entanto, existe na atividade humana uma atualização constante do “como fazer” que não pode ser reduzida a previsões possíveis ou prescrições de qualquer ordem pelo simples motivo que as situações de trabalho nunca se repetem. Negar essas variações e/ou subestimar a importância das gestões e subversões que os trabalhadores realizam cotidianamente para dar conta do trabalho é ir de encontro à própria noção de Homem proposta pela PNH. É retroceder ao Homem abstrato, ao Homem idealizado (seja ele usuário ou trabalhador), num meio de trabalho também abstrato. O trabalho não é um conceito abstrato, tal como apresentado pela prescrição, o trabalho deve ser entendido como um conceito encarnado, situado num tempo, num espaço, e inscrito nos corpos de quem o realiza. Uma ferramenta ou meio de trabalho não pode ser pensada como algo independente do trabalhador que o “utiliza” e das condições em que ele é “utilizado”, ela produz novas formas de trabalhar, novos trabalhadores, pode produzir prazer ou sofrimento, saúde ou doença.