A Era da Interdisciplinaridade

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Cena 01: A diarista que arruma nossa casa uma vez por semana, conta para minha esposa que irá levar o filhinho de um ano e meio ao pediatra particular por causa de uma tosse recorrente. Minha esposa pergunta perplexa:

– Mas não tem uma Unidade de Saúde da Família na esquina da tua rua?

– Tem, mas o médico que veio trabalhar lá chegou ao posto num “carrão” que deve custar uns 100 mil reais. Não durou uma semana. As crianças riscaram o carro dele e ele não apareceu mais para trabalhar.

Cena 02: Estou na fila de nomeação de concursados da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Técnicos em Enfermagem, Médicos, Psicólogos, Assistentes Sociais esperam na mesma fila o chamado para assinatura da posse. Uma jovem obstetra não para de receber telefonemas que parecem ser de sua secretária. Ela fica impaciente. Começa a falar alto, está deixando de atender pacientes por causa da burocracia.

Quase dou minha ficha para ela ser atendida antes. Os fatos se precipitam. Ela chama a atendente e pede para ser passada para o final da fila dos concursados. Depois do último candidato aprovado. Na prática esta abrindo mão de uma renda de cerca de 100 mil reais por ano. Afirma que já tem muitas horas de trabalho e para ganhar mais dinheiro teria que parar de dormir.

O SIMERS (Sindicato Médico do Rio Grande do Sul) tem afirmado que o RS tem um número maior de médicos por habitantes do que o preconizado pela Organização Mundial da Saúde – OMS. Com isso garante uma reserva de mercado que pressiona os proventos dos médicos para cima.

O centro de Porto Alegre tem uma altíssima concentração de consultórios médicos. Todas as especialidades médicas estão disponíveis. Embora para algumas especialidades exista uma carência de 15 a 30 dias para conseguir uma consulta pelos seguros de saúde. Pagando na hora, um valor muito maior do que o pago por qualquer convênio, sempre se pode conseguir um horário livre. Sem espera.

Esta situação evidencia uma contradição entre oferta e demanda que não pode ser explicada apenas pela lei da oferta e da procura. Há outros poderosos fatores culturais atuando na regulação da oferta de serviços médicos.

Dando por correto que dispomos do número de médicos preconizado pela OMS no território gaúcho, a falta de profissionais médicos interessados em trabalhar no setor público pode ser explicada pela remuneração baixa em relação aos proventos do setor privado.

Mas, além disso, há uma concentração dos mesmos no entorno dos territórios onde os médicos fizeram sua formação acadêmica. Isso evencia que o padrão de renda da classe médica gaúcha está relacionado a diversificação de vínculos. Eles trabalham para o SUS em instituições conveniadas, hospitais universitários e filantrópicos. Nestas grandes instituições de saúde a carga de trabalho é dividida com os profissionais residentes. Além disso, alguns fazem plantões e atuam em consultórios ou clínicas privadas.

Ora, isso explica porque mesmo com uma boa remuneração a atuação na atenção básica parece um serviço mal pago aos médicos. Mesmo o salário sendo bom, ele não compensa o grau de implicação e risco de se trabalhar junto às comunidades em vulnerabilidade social.

Mas aqui outra hipótese menos simplista pode ajudar a entender o fenômeno da falta de médicos dispostos a atender a população coberta pela Rebe Básica do SUS:

– Há mais conforto para os médicos nos grandes hospitais. Embora eu não chegue a afirmar que exista mais qualidade no ambiente de trabalho. Ou seja, além do fator salários, há o fator cultural. Os filhos de nossa classe média resistem em cuidar de nossa classe trabalhadora emergente. Aqui eu me socorro da fala de Marilena de Souza Chaui, de que ao contrário do que tem sido afirmado, não tivemos um aumento de nossa classe média. A renda da classe trabalhadora é que cresceu no país.

Novamente uma conclusão inusitada se impõe. Se há médicos suficientes para atender a nossa população, e a acusação de reserva de mercado é falsa, o problema talvez seja o subaproveitamento da equipe multidisciplinar.

A equipe multidisciplinar é que deve ser ampliada e/ou melhor, aproveitada. Mais profissionais das demais profissões da saúde devem ser contratados. Isso corrobora a tese de que o serviço médico, na forma em que vem sendo prestado é, na verdade, sobre remunerado.

Na minha experiência pessoal como paciente em consultório percebo que o médico está se reduzindo a um motor de busca humano. Ele colhe sintomas e os coteja com parâmetros de cuidado aferidos em pesquisa e desenvolvimento. Um Google humano realmente é dispensável na Atenção Básica onde vínculo e implicação são os verdadeiros fatores que impactam os indicativos epidemiológicos e as estatísticas de qualidade de vida.

Nisso Enfermeiros, Terapeutas Ocupacionais, Psicólogos, Assistentes Sociais, Fisioterapeutas, entre outras ocupações são bem mais eficazes do que médicos obcecados pela integridade da pintura de seus carros. Igualmente a diferença de salários entre cirurgiões de transplante e especialistas com mestrado e doutorado em saúde pública não é justificada. A remuneração na atenção básica deve ser incrementada.

Mas na saúde, como na educação, o déficit do serviço público no cuidado com nossa classe trabalhadora pode ferir profundamente os interesses de nossas classes médias. O crescimento nos salários dos servidores públicos na última década é mensurável. Mas ele está atrelado ao desenvolvimento humano e econômico de toda a sociedade.

Nas naturais e esperadas oscilações cíclicas das economias capitalistas uma retração na economia pode tornar-se depressão econômica se a base educacional e de atenção a saúde for frágil. Nessa hipótese a classe média encolheria. Ou seja, se não encontrarmos soluções para a manutenção do desenvolvimento humano sustentável, nós servidores públicos, diretos ou indiretos, pagaremos o preço amargo na próxima fase de contração econômica.