Mudando o ritual para humanizar
Abri a porta do consultório, entrei, pinguei um pouco de soro fisiológico e coloquei o meu jaleco, óculos de proteção, gorro e máscara. Abri a gaveta e retirei lápis, borracha, caneta, corretivo, mapas de produção e folhas de código de procedimentos do SUS. Coloquei tudo sobre a bancada de apoio. Depois de todo este ritual, chegou a atendente que me instrumentaria naquele dia. Na agenda, oito crianças marcadas. Irritada, chamei a recepcionista do serviço. – Você deve marcar seis crianças e não oito, entendeu? – Ai doutora, estas duas estão precisando demais. Dá um jeitinho de encaixar, por favor. – O que você sabe sobre estar precisando? Quem avalia isso é o dentista e não você. – È que a mãe delas me disse que ontem nem conseguiram almoçar de tanta dor de dente. – Isto é urgência e não atendimento de rotina. Esse povo chega e te conta algumas mentiras e você acredita. – Pensei que a senhora não fosse se incomodar. São só duas. – Incomodo-me sim. Não ganho um centavo a mais se eu atender mais duas crianças. Os médicos, estes sim é que ganham se fizerem mais que 16 consultas por dia. Além do mais, não quero comprometer a qualidade do meu atendimento entupindo a agenda. – Mas a senhora poderia fazer uma obturaçãozinha menor nos outros para dar tempo de atender mais estas duas. Nem que seja só para colocar um curativozinho para elas conseguirem comer. Coitadinhas, elas são tão carentes. Precisaram andar a pé quase uma hora até a estrada principal e depois pegaram uma carona pra chegar até aqui. – Olha menina, não queira me convencer com seus argumentos. Se você marcou mais duas crianças o problema é seu. Eu não sou dentista de urgência e papo encerrado. Não sou responsável pelos problemas de todo mundo. Pensei…pensei…. -Vamos fazer o seguinte: traga aqui as duas crianças que estão lá fora para que eu veja como estão suas bocas. A mãe entrou com as duas meninas. Olhei para os pés, cabelos e trajes. – Bom dia dôtora. – Bom dia. – Será que a senhora podia dar uma olhada nos dentes delas pra mim? Ontem elas nem almoçaram. – Onde vocês moram? – No sítio do seu Antônio Russo. Os vestidinhos eram tão velhinhos e sujos. Os cabelinhos, ressecados e despenteados como quem acordara naquele instante. Os pezinhos mostravam unhas compridas e sujas. Os olhinhos, medrosos como quem avistava um leão fora da jaula, espantavam-se com minha vestimenta. Uma delas agarrou a mãe e começou a chorar. A outra se escondeu atrás da mãe, segurando na barra de seu vestido roto. A mãe deu um safanão nas duas e disse algumas palavras que eu não consegui entender. Compadeci-me das duas. As boquinhas dependiam de mim para conseguir almoçar em paz. Diante de tanta informação silenciosa eu não poderia mais pensar apenas em suas bocas. A partir desse dia, desde a sala de espera, o meu ritual nunca mais seria o mesmo.
Por patrinutri
Angela,
Que bom que sua atitude mudou, que bom que você ouviu o silêncio da vida!
Sua história me fez lembrar minha própria história, que me considerando humanizada e sensível acabei por aprender com uma usuária a ouvir o que a vida tem a nos ensinar.
Muitos que já me conhecem, também conhecem esta história, pois fiz dela um mote para minha vida profissional.
As pessoas em seu silêncio tem muito a nos ensinar.
Sou nutricionista e por muito tempo trabalhei em um hospital geral público estadual. Atendia ambulatório 12 consultas por turno de 6h. Ao final desta rotina também me sentia como sua descrição, cansada da rotina, explorada em minha força de trabalho, ao esgotamento.
Certo dia recebi em meio a muitas consultas uma senhora de aproximadamente 60 anos, obesa, diabética, com complicações circulatórias de membros inferiores. Ao fazer a anamnese, poucas palavras conseguia arrancar da senhora.
Olha que sou muito falastrona e tentava sempre deixá-los a vontade!
Então resolvi prescrever a dieta, depois do exame antropométrico e de avaliar os exames de sangue e ler atentamente o encaminhamento médico.
Marcamos um retorno para o próximo mês e muitos meses se seguiram e a senhora não emagrecera nem 100g.
Questionando minha contuda, fazendo uma autocrítica, julguei sempre ser da senhora a "culpa" pela falta de êxito no tratamento.
Realizei adaptações, busquei alternativas de cardápio, etc…
Ela vinha regularmente à consulta, mas não aderia ao tratamento.
A esta altura estava bem incomodada com isso.
Então decidi dizer a ela que a estratégia seria gastar a energia consumida, ao invés de reduzir a dieta. Prescrevi então caminhadas que tinham sua intensidade aumentada a cada semana tanto em relação a distância quanto no tempo, até que pudesse caminhar 1h diária. Disse então que desse ao menos uma volta ao redor da casa após cada refeição.
Passaram-se alguns meses e a senhora não veio mais a consulta. Pensei: desistiu, não quer mesmo se tratar.
Porém o ambulatório tinha um serviço de apoio aos seus pacientes que não podiam se deslocar até o hospital, atendimento domiciliar que tinha por objetivo principal dar suporte aos pacientes em seu tratamento, pós alta hospitalar e evitar a reinternação.
Qual não foi minha surpresa quando o grupo de apoio solicitou minha presença numa visita a casa daquela paciente.
Ela havia perdido a perna por amputação. Sua casa ficava na periferia, num morro que nem o carro subia. E ela morava num penhasco, não havia a mínima possibilidade de se caminhar em volta da casa. Vivia sozinha, os filhos e netos não a vizitavam e ficara viúva a 1 ano!
Só te digo que desde este dia, passei a ver que não sabia tudo e que minha técnica era muitas vezes ineficaz diante das diversas realidades. Aprendi a ouvir de verdade as pessoas que entravam no ambulatório e menos prescritiva passei a construir com as pessoas as alternativas para os tratamentos.
Grande beijo
Patrícia S. C. Silva
Blumenau SC