Quando o Poeta Abdicou da Poesia!

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Esse texto visa abrir mais uma porta nessa polêmica toda formada a partir do artigo de Ferreira Gullar intitulado "Uma Lei Errada" publicado na "Folha de São Paulo", onde tenta fazer voltar a roda da história ao praticamente propor o desmantelamento da Reforma Psiquiátrica e o retorno ao modelo hospitalocêntrico de (des)assistência.

 

Mas, nem tanto ao mar, nem tanto a terra. No campo ideológico, evidentemente, temos que combater o artigo do Ferreira Gullar por, entre outras terríveis consequências, atender aos interesses da mercatilização da saúde mental revivendo o pesadelo de termos novamente o cenário de dinheiro público financiando campos de concentração que se intitulavam de "hospitais psiquiátricos".  Do ponto de vista técnico e científico, o texto é uma compilaçação de equívocos e desinformações. Mas temos que pensar também no que leva o nosso poeta a sua explosão raivosa. Além do desgaste emocional que significa o enfrentamento da problemática da saúde mental na própria família – que deve fazer aflorar no poeta um enorme sentimento de indignação, sofrimento e impotência – dado os graves problemas sociais enfrentados pelo Brasil e dado o fato que a maioria daquilo que chamamos de "doença" e/ou  "transtorno mental" terem bases evidentes na crise social intrínseca ao capitalismo periférico (desemprego, distorções nas relações de gênero, fome, desnutrição, concentração de renda, corrupção da máquina pública comprometendo eficiência das políticas sociais compensatórias etc), parece evidente que a imagem descrita dos "loucos" que "vagam" pelas ruas  tem uma base real, não sendo formado só de "loucos" mas também pela diversidade de excluídos deste país e que, por estas condições de abandono e indigência, acabam também engrossando os dados epidemiológicos de saúde mental, um mosaico de individualidades a formar o circulo vicioso da loucura.

 

As redes de saúde mental ainda são precárias na maior parte do Brasil e não conseguem implementar ações resolutivas que dêem conta do descalabro da demanda. Até porque o descalabro em parte é resultado da falta de saneamento básico, da ausência de políticas públicas de lazer e da eterna pervesidade da concentração de renda. Ou seja, o aparato construído a partir da reforma pode produzir (e em parte produz) uma efetiva resolutividade terapêutica mas seu poder se esgota na falta crônica de recursos para produzir sua viabilização. Um dos erros do poeta é partir  da premissa que antes da Reforma havia assistência, ele confunde a contenção dos hospitais com terapia e cuidado, estando cego aos nefastos efeitos da cronificação que a instituição manicomial provoca. O segundo erro é não perceber  efetividade alguma no aparato construído pelo espírito da reforma. Seu artigo não menciona a extensão e complexidade de possibildiades instituídas pela Reforma, se restringindo apenas ao HD e o acusando de ineficiente. O terceiro erro  é creditar à Reforma a ausência de políticas públicas mais abrangentes, que dêem conta de forma radical de todas as demandas exigidas pela desospitalização e/ou da reinserção do portador de transtorno na cotidianeidade.

 

Exigir o cumprimento da reforma psiquiátrica traz no seu bojo a mesma exigência de construção do SUS, o que implica numa nova conformação de poder onde a classe trabalhadora construa real hegemonia política de seus interesses frente aos atuais grupos sociais dominantes. Não é uma questão meramente técnica de forma de gestão, redesenho de sistema ou alocação de recursos financeiros. É uma questão fundamentalmente política. Assim, por mais que possamos estar movidos por grandes e boas intenções, talvez os gestos de reinserção que intentamos promover com relação ao portador de transtornos mentais sejam relativamente inócuos em termos sociais, na medida em que o manto perverso da exclusão tem sua raiz na dualidade intrinseca da sociedade capitalista que, no nosso caso, leva essa mesma dualidade ao extremo. Nossa função assim seria correlata ao marinheiro que desesperado tenta impedir que o bote afunde e a cada balde de água que devolve ao mar entram três baldes pelo buraco do barco, pois não se trata mais de termos ou não modelos centrados em hospitais mas sim de buscar respostas radicais ao enfrentamento da problemática da saúde que não é só da saúde mas diz respeito a como os grupos sociais estabelecem relações de poder e subalternidade. Assim, as Reformas Sanitária e Psiquiátrica são utpopias que, em sua radicalidade, exigem profundas transformações políticas quem nem toda a raiva do poeta consegue antever e nem toda a nossa crítica da raiva consegue pincelar.

 

Mas, finalizando, não devemos fazer com que a raiva momentânea do artigo do poeta nos deixe ficar com raiva dele. Isso pode colocar em risco toda a beleza de sua poesia. E, convenhamos,  a obra sempre se torna maior que seu criador. Veja por exemplo, o poema "Não Há Vagas". Ali nos defrontamos com uma certa etiologia de grande parte do sofrimento psíquico. O problema de Ferreira Gullar talvez tenha sido deixar de ser poeta para falar de Reforma Psiquiátrica:

NÃO HÁ VAGAS

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

– porque o poema, senhores,
  está fechado:
  "não há vagas"

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

           O poema, senhores,
           não fede
           nem cheira

Ferreira Gullar