Família RHS
Esta pequena crônica é uma reedição de um comentário feito em resposta a Iza Sardenberg em um post no início deste ano. Retomo-o neste momento de alegria para nossa família Humaniza SUS.
De fato a família pressupõe certa rigidez vinculada ao modelo cultural, em primeiro lugar, social em seguida e finalmente, mas não menos determinante, o econômico.
Parece-me que a premissa do sucesso do núcleo familiar é justamente a proteção contra o tipo de "guerra de todos contra todos" que o Estado também pretende eliminar. Ou seja, a família é muito eficiente para proteção de grupos culturais voltados para seu próprio interior. Assim, o objetivo do Estado é proteger os membros de uma linhagem ou clã contra a violência dos demais grupos. Uma coesão mais ampla forçada pela necessidade.
O Estado pode ser visto como uma estratégia para tratarmos os demais seres humanos como parte de nossa própria família. Esta é a direção de um processo em que as tribos, os clãs, as comunidades, a sociedade e uma cultura assumem a forma de uma civilização que é bem sucedida. Mesmo que toda a civilização seja paradoxal e pontuada por diversos tipos de iniquidade.
Já se escreveu sobre uma bem sucedida economia interna dos núcleos familiares. Uma espécie de eficiência oriunda da concentração da satisfação de muitas necessidades humanas em uma célula social básica: Proteção, alimentação, vínculos afetivos, sensuais e/ou amorosos, etc. Estas vantagens trazem custos embutidos. Freud tratou muito bem dos traumas familiares no interior de uma sociedade burguesa, para ficarmos no exemplo que nos é mais conhecido.
Porém, quando ele expandiu sua análise em 1930, o que parecia certo pessimismo no interior das relações familiares, tornou-se desilusão em seu famoso texto "O mal estar na civilização". De modo que é pertinente sublinhar os aspectos mais problemáticos do modelo familiar burguês.
As marcas da contingência profundamente inscritas na instituição da família podem dizer mais da animalidade presente em nós e menos das relações e encontros amorosos. Pensemos nas guerras tribais da aurora da humanidade para raptar mulheres.
No entanto a família, apoiada e sustentada nas relações comunitárias é profundamente funcional. Ela atravessa a história ao longo de diversas ascensões e quedas de civilizações. Varia com toda a mudança cultural e social é mais ou menos coesa, variando com os modelos, estágios e fases econômicas.
Nosso mito cristão tem essa misteriosa ruptura com a família que aparece nos evangelhos e nas comunidades primitivas onde Jesus parece tentar expandir o amor por si mesmo e pelos consanguíneos a toda a comunidade. Curiosamente parece que a propriedade e a moeda eram desprezadas nestes e em outros tipos de comunas que a história humana tem registrado. Ou seja, as famílias são maleáveis e se adaptam muito bem a diferentes contextos culturais e econômicos. De certa forma ela nunca é a mesma e sempre perdura.
E esta pode ser uma pista para entender o que às vezes pensamos como o fracasso da família: Numa sociedade de amor livre e mútuo, a moeda e a posse perdem valor e também a precedência dos núcleos familiares sobre os comunitários. Família e poder parecem desgraçada e afortunadamente ligados, dependendo de qual ângulo agente decida olhar.
Por exemplo, para proteger minha esposa e meu filho eu desejo muito ter poder. Porém se este “poder” se prostitui para justificar um chauvinismo em relação aos demais humanos e a natureza, certamente eu o abomino. Mas quando um poder passa a ser o outro, é que ainda não podemos saber. Especialmente se conseguirmos ir para além de uma ou outra forma de racionalização, tanto religiosa quanto, intelectual ou lógica.
É exatamente este o drama das famílias que se desestruturam em algum momento ou se rompem definitivamente: Na prática elas não podem proteger, habilitar e socializar seus membros. Ao contrário, elas instauram um individualismo absurdo e é cada um por si em um mesmo nível. Sejam adultos, sejam crianças, a sobrevivência passa a ser uma tarefa de cada um. A (com)unidade de destino consciente, que é o elemento mais notável na família (e que ampliada funda a civilização) se desfaz.
Seja uma criança ou um adulto adoecido, todos atuam caoticamente e se destroem simultaneamente. Não há o benefício da proteção e do cuidado egoísta e intra-centrado, nem a liberdade e o amor mútuo das comunidades em que o peso da família é pelo menos equivalente, se não menor, que os valores mais amplos da comunidade.
Claro que não há uma dicotomia absoluta. Na prática a combinação de proteção e negligência nas famílias é muito diferenciada e relativa. Afinal aqui estamos nós, não é?
Somente nos casos extremos é que vemos a família desagregar e não produzir nenhum valor positivo. Mesmo nas situações de miséria extrema temos como ver preservado o melhor da família. Por isso, acredito que civilizações ascendem e decaem ciclicamente. Depois de uma queda vemos os núcleos familiares remanescentes promoverem uma reintegração e uma comunhão de afetos mais ampla. Um recomeço ou um retorno que gosto de chamar de comunidade de destino.
Em uma troca de e-mails estimulantes, o Dênis Petuco e o Ricardo Teixeira souberam apontar os indícios de alianças necessárias, com os liberais e, talvez mesmo com os conservadores penso eu, para evitarmos o espectro do fascismo e seus insistentes retornos na crônica do cotidiano.
Em São Paulo, no Líbano e no Egito, em Davos e em Porto Alegre o espectro nos ronda. Micro fascismos se instituem aqui e ali. Alicerçados em micro poderes que devem der contidos em esforços continuados.
Nosso diálogo parece ser uma destas (micro?) resistências aos fascismos cotidianos… Neste sentido constituímos uma família ampliada: A família da RHS.
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Marco,
Essa lente que mira a RHS como uma família me fez lembrar de coisas como acolhimento, função apoio, lateralização, transversalidade e muitas outras que praticamos por aqui.
Maternagem, "brodagem" ( brothers ) na produção de cuidados com os usuários de nossa rede. Hospitalidade como efeito dos afetos que aqui cultivamos…
Linda lente, Marco!
um beijo,
Iza