A causa da elevada taxa de morbi-mortalidade simbólica no Brasil: a desconsideração do item cor/raça em saúde.

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No Brasil, em função da forma histórica de constituição de nossa sociedade, o fenômeno saúde-doença deve ser compreendido pela perspectiva da diversidade cultural (negra ou afro-brasileira, indígena, européia, asiática, entre outras culturas) e da (in) equidade em saúde. Como campo de intervenção social, parte-se da constatação de que o racismo e a discriminação racial expõem mulheres e homens negros a situações mais perversas de vida e de morte, as quais só podem ser modificadas pela adoção de políticas públicas de equidade, capazes de reconhecer os múltiplos fatores que resultam em condições adversas.

Em que pese o SUS garantir a universalidade da saúde, numa sociedade profundamente desigual como a brasileira, a conquista da universalidade dos serviços tem se mostrado insuficiente para assegurar a equidade pois, ao subestimar as necessidades de grupos populacionais específicos, contribui para agravar quadro das condições  sanitárias nas quais vivem muitas pessoas negras.

Há escassez de estudos e pesquisas sobre o processo saúde doença da população negra  e principalmente sobre o impacto do racismo sobre esta população.

É necessário que os gestores e os profissionais dos serviços de saúde, diante da diversidade cultural brasileira, considerem as teorias transculturais e de bioética para abordar a discriminação, o preconceito e o estigma nas relações inter-étnicas entre o sistema de saúde e o cliente, assim como o processo de trabalho em saúde.

Há necessidade de se construir um conhecimento teórico sobre o processo saúde/doença das etnias que compõem a nação brasileira, a partir dos dados do SUS que já contempla em seu sistema a categoria raça/cor, como também a partir dos dados das pesquisas que observem a Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, sobre a ética da pesquisa com seres humanos, que exige a inserção do item cor/etnia na identificação da amostra (e a análise desagregada dos dados). A não notificação ou a desconsideração desta informação pode ser entendida “invisibilização”, isto é, uma prática para-etnocida que tem por objetivo o controle das populações não-hegemônicas.

A notificação do item raça/cor e a sua análise desagregada constituem  uma reação à ação invisibilizadora da sociedade nacional. 

Estas informações  permitirão aos profissionais de saúde o estudo sistemático, por exemplo, da formação da identidade individual e coletiva, ou seja, os sistemas de pertencimento e de identificação, pela perspectiva da saúde. Igualmente será possível verificar como acontecem, no contexto da interação com o sistema de saúde, a perda da identidade e a aculturação/assimilação que, por sua vez, podem conduzir às situações de despojamento e opressão, violências simbólicas e reais.

A importância da coleta e da interpretação do dado relacionado ao item cor/etnia, por auto-declaração, reside no fato de que será possível, doravante, evidenciar as relações antagônicas e as dinâmicas interculturais entre os usuários do SUS pertencentes a comunidades de diferentes extratos sociais e o sistema de saúde propriamente dito, favilitando o enfrentamento do racismo institucional.

No plano individual, os dados propiciarão o estudo sobre as estratégias psicológicas de defesa construídas culturalmente, tais como a somatização, a negação, a racionalização e a invisibilidade, para o enfrentamento do racismo interpessoal ou internalizado e de outras ideologias discriminatórias (como o sexismo, por exemplo).

A consolidação do conhecimento sobre a saúde cultural brasileira se completa com a proposição de estratégias que permitam a implantação em todas as esferas da administração a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra que visa correção da desigualdade social  e da discriminação no SUS.

A partir do conhecimento científico sobre a dimensão étnica na saúde e na doença da população brasileira e da implementação da PNSIPN poderemos neutralizar a perspectiva positivista, idealista e eurocêntrica, causadora de prejuízos para os usuários (como as barreiras no acesso à saúde) e para os trabalhadores do sistema de saúde; assim como promover o planejamento, a provisão e a avaliação da atenção à saúde por uma perspectiva culturalmente sensível para os grupos étnicos não-hegemônicos.