Demonizando-me, mas em boa companhia.

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Fora do amplo universo de nossas crenças e desejos, a realidade insiste em nos apresentar um mundo de melhorias e retrocessos recorrentes. O que parece ser mais estável é o mito arraigado de que os incrementos na técnica se repliquem na moral.

Não somos criaturas que agem de acordo com a moral. Precisamos da moral para justificar as contradições de nossos desejos imoderados, de nossa arrogância incontornável e nosso vício em chamar de justiça nossas conveniências que colidem com os interesses dos demais.

Reconhecer isso é um passo para chegarmos a um modo de vida inclusivo e tolerante. A tolerância só pode ser um objetivo se reconhecermos que ela é apenas uma entre muitas inclinações humanas. Fazê-la florescer exige disciplina e espírito resoluto.

Caso contrário, é mais provável que façamos de um jeito favorável a nosso interesse e o racionalizemos como justiça.

O retorno do tratamento desumanizado aos usuários de drogas não é novo. Há quinhentos anos que buscamos melhorias na lei para reformar nossa conduta. E o resultado tem sido o mesmo: o contorno das leis para justificar nossa conduta.

Sou preconceituoso e excludente. Se não vigiar de perto meu comportamento, repetidamente me verei sendo omisso ou conivente com discursos de demonização do outro.

Podendo me ver dessa forma, consigo ser realista em relação ao comportamento da média das pessoas, que não deve ser muito diferente do meu em linhas gerais. Então, uma coesão social que configure um modo de convivência mais igualitário, como o Japonês, depende de arranjos sociais que exigirão uma dedicação coletiva intensa e que produzirá uma cidadania única.

Mesmo inspirada em modelos sociais mais igualitários e tolerantes que o nosso, um modo de vida coletivo jamais pode ser emulado completamente. O que emerge é sempre novo e hibridizado. O hábito pode ser modificado. Mas ele permanece de forma oculta naquilo que o sucede.

Isso não significa que a ordem nova não possa ser melhorada. O que devemos aceitar é que o custo do aumento equitativo da qualidade de vida em uma coletividade é o sacrifício de uma geração em nome do bem da próxima. Ou seja, antes de lamentar, temos que estar permanentemente vigilantes.

Para isso, temos que aceitar que a iniquidade nos habita. Ela é nossa inclinação para a racionalização e o idealismo. Nossa persistente mania de nos vermos como anjos caídos em um mundo mau. Vermos em todos, menos em nós, a gênese do mau é um absurdo tornado senso comum.

Eu poderia buscar na literatura e filosofia mundial muitos nomes célebres para, negando minha banalidade por ilustres citações, acabar justamente por admiti-la.

Mas que nada, quem tem no banheiro uma edição de Memórias Póstumas de Brás Cubas, tem o melhor que o ocidente já produziu para fundamentar a (in)significância humana.

Vamos a citação final que na série de posts ou num livro, seria uma bela epígrafe que, parecendo efeito de modéstia, na verdade me adorna, na forma de um reconhecimento a meu intercessor primeiro:

“Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: – Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.”