Caminhos e descaminhos (ou reação aos pés descalços)

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Este texto nasce do enfrentamento de uma sensação de mal-estar, quando me deparei com uma entrevista de um dos médicos mais aclamados deste país que categoricamente afirma “a internação compulsória é caminho a ser percorrido”. Tentarei provar o contrário.
 
Inicio deixando clara a minha profunda discordância com o fato ancorado na fatídica entrevista que considera a discussão das internações compulsórias como mera ideologia ou, pior, uma conduta “ridícula”. É inevitável que haja pontos destoantes neste debate, mas uma política de governo, que envolve milhares de pessoas, que introduz conceitos e práticas de saúde, modulando e priorizando iniciativas de intervenção compulsória frente a outras possibilidades de acessibilidade e vínculo para o estabelecimento do cuidado não deve ser encarada como uma discussão ridícula ou menor. Não será apenas a decisão individual de se internar ou não um paciente que se encontra em jogo neste debate, mas certamente uma superação de práticas compartilhadas de cuidado por uma unilateralização do complexo manejo dos pacientes dependentes químicos.
 
Outro ponto que me causa desconforto é o fato de se considerar a dependência química semelhante a um tumor avançado. Além de uma tentativa estapafúrdia de biologizar ao extremo a dependência química, a analogia reforça a centralidade do cuidado médico como base para a abordagem do tratamento da dependência. E além disso, comparar câncer à drogadicção é perpetrar mais estigmas, realimentando sentimentos de culpa e auto-punição. Uma comparação fragilizadora e, no mínimo, diminutiva de potência de vida aos que acreditam em seus pacientes.
 
Mas, para mim, o ápice da esquizofrenia com relação ao conteúdo divulgado na entrevista toma corpo quando se considera que internar compulsoriamente um paciente é “tirá-lo da sarjeta”. Sabe-se que a melhor possibilidade de sucesso de uma internação psiquiátrica advém de sua temporalidade breve, de sua capacidade de reestabelecer redes de suporte para o retorno à sociedade e, sobretudo, quando se aposta no poder decisório do próprio paciente. “O outro caminho”, prescrito e endossado por renomados médicos “tratora” a maior parte desses passos a serem trilhados. E pior, ignoram que a internação ao tirar da sarjeta, não impede o seu retorno na alta hospitalar (ou será, que assim como ocorre no caso do câncer, no qual redes solidárias sustentam inúmeras casas de apoio para suporte familiar e terapêutico, se terá em grau, gênero e número ações semelhantes em prol dos dependência química?). Tenho as minhas dúvidas.
 
É triste saber que ainda ecoa os gritos de epidemia quando o assunto é o crack. É triste saber que internação virou sinônimo de reinserção social efetiva, que leito hospitalar virou irmão siamês de lar. Mas é desalentadoramente insuportável ouvir que o “crack” pode ser mais forte que eu e você juntos, que uma mãe e seu filho! Mais poderoso do que os seres humanos que diuturnamente eram invisíveis nas mais variadas sarjetas e que, agora, ganharam um visibilidade estratosférica e uma preocupação caridosa pelas boas mãos do Governo!
 
Se a internação compulsória é caminho a ser percorrido, quero clinicar, peripateticamente, em direção a outras encruzilhadas. Trocar passos em um terreno onde o sentido da caminhada não agrade apenas ao meu furor de curar um processo crônico, individualizado e altamente complexo com uma simples “receita”.
 
Quero tropeçar, mas não num caminho reto, num pensamento quadriculado, cama-equipo-enfermaria-grades, em que meus passos se alimentam da minha hipertrofia medicocêntrica frente a hipotrofia da decisão do paciente. Posso tropeçar, se a queda virar um passo de dança. E isso só ocorre se a dança não é solo, quando o par dança “de ouvido” a bolero do cuidado.