Nossos vícios: nossas virtudes.
Há um mistério que economistas do mundo inteiro não conseguem explicar: Os juros mais altos do mundo durante os anos 90 e na primeira década do milênio não impediram o Brasil de tornar-se uma economia emergente. Estamos nos desenvolvendo mesmo em meio a nossas iniquidades sociais desde o século XX. Em meio à democracia, autoritarismo, cultura de exclusão e desigualdades sociais. Como?
O capitalismo se desenvolve de forma autóctone em cada país do mundo. Temos o hábito de pensar as peculiaridades da cultura brasileira como desvantagens em comparação com as demais culturas do mundo. Mas toda a diversidade produz uma série de efeitos e muitos deles são basicamente funcionais. Outros são disfuncionais e mantem a dinâmica social em permanente processo de mudança. As forças da estabilidade e as do desequilíbrio estrutural estão permanentemente atuando para acelerar ou retardar as transformações sociais. Isso explica porque tradições se mantem em meio ao acelerado processo de mudanças que estamos vivendo.
A tolerância e a capacidade de produzir arranjos de ajustes em meio ao cenário hiperinflacionário dos anos 80 no Brasil tem se mostrado útil no cenário de relativa estabilidade monetária deste início de século. Vejamos o desenvolvimento acelerado do mercado da construção civil no Brasil de Dilma:
Uma parte da mão de obra especializada na área está vinculada as grandes construtoras que produziam os condomínios de alto padrão de nossas elites e classes médias. Não havia um exército de mão de obra qualificada de reserva para o caso de o mercado de condomínios se expandirem para as famílias com renda de 5.000 a 10.000 reais por mês. Com a queda nos juros e o aumento da renda da classe C, este mercado se aqueceu muito rapidamente. Como é esperado, nosso modelo de Estado de bem estar, embora em franco crescimento desde a constituição cidadã de 1988, é menos dinâmico do que a economia. Não conseguimos antecipar a formação de mão de obra capacitada para dar conta do aumento dos empreendimentos imobiliários para a classe consumidora emergente. A tecnologia de ponta da engenharia dá conta de erguer as torres dos condomínios onde mais de 500 famílias vão conhecer os confortos do ar-condicionado e do sistema de gás encanado para aquecer seus chuveiros.
Muito da parte de acabamento destas obras ainda depende da motricidade fina de mão de obra experiente e treinada. Em consequência temos sérios problemas de acabamento nestes empreendimentos imobiliários. Num país europeu este problema paralisaria o setor, ou agravaria o problema da imigração ilegal. No Brasil, nossa capacidade para tolerar e improvisar, a partir de desconfortos e dissabores permite que a economia siga crescendo.
O mistério do nosso crescimento pode estar relacionado a aspectos não examinados de atributos que nos acostumamos a chamar de vícios do cidadão comum brasileiro.
Sabemos que há países na Ásia e na África que não possuem sistemas de aposentadoria pública. Na África, porque alguns Estados não podem prover nem sistemas educacionais e de saúde. No oriente, porque a expectativa de cuidados para com os idosos (que são muito valorizados) é delegada as famílias. Ou seja, este é um ônus que alguns dos cidadãos do resto do planeta arcam individualmente, seja nos estados falidos ou em culturas diferentes da nossa.
Na China os filhos homens cuidam de seus pais na velhice. Este fator tradicional, unido a uma política de controle de natalidade de um casal um filho, promovido pelo governo teve consequências insólitas e não desejadas pelos engenheiros sociais que as formularam. Foi grande na década de 80 e 90 o número de abortos e mesmo de assassinato de meninas recém-nascidas. Um casal com uma filha veria ela cuidar dos sogros, ao mesmo tempo em que estaria desamparado durante sua velhice. Ter mais filhos na esperança de um ser menino era oneroso demais para as famílias. Algumas comunidades chinesas tem hoje um número muito menor de mulheres do que de homens. O fenômeno demográfico se deve a uma confluência de fatores culturais tradicionais e políticas públicas de governo.
Esses fenômenos são comuns em todo o mundo. A política não é de fato um expediente para refazer a qualidade da natureza humana. É uma forma modesta de lidar com males recorrentes e com outros que vão surgir sem que possamos prever. Geralmente, em assuntos humanos as explicações sucedem os fenômenos, mas raramente os antecipam.
No Brasil é uma verdade proibida admitir que sistemas educacionais e de saúde melhores implicariam em incrementos de 30 até 40% nas atuais cargas tributárias. Por outro lado, nossa forma de encarar a realidade permite que sonhemos que sanando nossos vícios tradicionais, a vida para todos poderia chegar aos termos ideais. É por isso que escrevemos os melhores estatutos e leis de proteção social do mundo sem nunca prever de onde sairão os recursos.
O senso comum assumiu que nossos vícios da tolerância e da improvisação podem ser varridos em nome de uma ética rígida e vitoriana, ou nórdica, e que isto bastará para resolvermos nossos problemas com a educação e saúde pública. Embora desejemos um Estado de proteção social europeu, gostamos do individualismo norte americano. Mas é uma ilusão termos os benefícios dos dois modelos. É mais provável que acumulemos os ônus de uma sociedade altamente encarcerada e desigual como a americana e de altos impostos como a europeia.
Ora, nosso vício é também nossa virtude. Se somarmos a tolerância e a capacidade de improvisação que são nossas marcas distintivas a um realismo mais pragmático, poderemos decidir arcar com os custos reais de um Estado de Direito Democrático e de Proteção Social. Vamos ter que investir mais nas instituições públicas e gastar mais com o combate a corrupção. Teremos que ser menos tolerantes com tudo que avilta os direitos sociais e menos capazes de improvisar formas de sonegação de impostos. Mas pode valer a pena, considerando nossa riqueza em biodiversidade e nossa disposição para a busca de equações de convivência entre os diferentes.
O problema é que com o desenvolvimento econômico temos assistido ao ressurgimento de fundamentalismos religiosos e morais que sabotam nossa mais reconhecida vocação: a de sermos tolerantes com os diferentes e ágeis em prover arranjos de coexistência.