A necessidade do mito.
Quando dizemos que Elvis Presley ou Marilyn Monroe são mitos, estamos admitindo uma verdade tácita e inconfessa. Não podemos viver sem a beleza de uma ilusão sobre nosso significado ou importância em relação à diversidade de coisas no mundo. Embora nossos mitos tenham existido em meio as mais banais contingências e muitos acidentes tenham constituído o essencial em suas trajetórias, gostamos de pensar que eles, como deuses extraviados no mundo, usaram suas virtudes e livre arbítrio para moldarem seus destinos. Mitificamos nossas próprias existências ao narrá-las repetidamente para nós mesmos. O amor a um mito é o amor pelas ilusões que cultivamos sobre nós mesmos.
A característica mais superficial da unidade diversa que chamamos de “eu” é o fluxo da atividade consciente que agregamos caoticamente através da memória. A consciência do tempo, e de sermos um indivíduo coeso não poderia sozinha nos manter vivos. Processamos conscientemente cerca de um décimo de milionésimo da informação que nos mantém vivos. A faixa da consciência é estreita como uma banda larga de 20 bits.
Todo ser vivo é um tipo de sistema cognitivo. Uma bactéria existe de acordo com os mesmos parâmetros que os seres vivos mais complexos. Não somos muito mais que a pálida superfície da profundidade de um processo que tem mais de três bilhões de anos sobre a terra.
Pensamos que somos altamente avançados e o ápice da criação. Mas somos mais como um mero bronzeado pelo qual a longa trajetória da vida no planeta tem absorvido os fótons de luz solar recentemente. Uma manifestação eventual e altamente instável do imemorial sistema vivo que é nosso planeta. Um pouco menos de concentração do oxigênio na atmosfera e não poderíamos permanecer muito mais de 5 minutos sobre o planeta. Todos nós, os sete bilhões de humanos vivos atualmente.
Deus simplesmente não poderia ser uma personalidade ou um ser individual como costumamos pensar. A onipotência vai muito além da autoconsciência. Seria preciso um tipo de princípio unificador da vida e seus processos que agisse como um centro sem ter um centro.
Mas é exatamente isso que ocorre com os seres vivos. Eles processam informação. E a informação retorna sobre ela mesma. Do modo como as partículas atômicas se entrelaçam e se comportam de forma a parecerem corpúsculos interagindo e formando estruturas individuais. É como se o elétron fosse um ser distinto. Mas está provado que ele é tanto um ponto no espaço-tempo, quanto uma onda de energia. Um “eu” ou uma “coisa” não são. Apenas estão em uma ou outra situação de acordo com a perspectiva ou tempo em que se tenta apreender o fenômeno.
Nós e um rato das pradarias somos esse tipo de unidade indiferenciada. A consciência e a linguagem – unidas na forma de memória cristalizada na cultura escrita – se percebem como um conjunto de partículas separadas e distintas das demais. Esse é o erro do eu. Um bug em nossa programação evolucionária.
A diferença entre uma aranha, uma ameba, um elefante e um ser humano é muito pequena. Os seres vivos trocam informações em processos de captar e estocar energia. A linguagem é a forma como as espécies vivas podem estocar a informação e dispô-la no tempo para prover sua reprodução.
Nossa única distinção não é a de sermos mais inteligentes ou sermos cognitivamente superiores a uma bactéria. O que nos diferencia entre os seres vivos é a capacidade de cristalizar a experiência ao longo do tempo na forma de linguagens que resistem ao esquecimento. A utilidade de preservar uma experiência contra o tempo é equipar nossa espécie para existir por um período mais longo.
Não provamos nada com isso ainda, visto que somos muito recentes na longa trajetória da vida sobre o planeta. Além disso, há outras espécies que tem persistido no mundo a muito mais tempo do que os mamíferos ou os antropoides. Algumas possuem uma espécie de cultura e também usam o autoengano como ferramenta no processo de prover uma descendência.
Os formigueiros possuem uma alma coletiva e estão envolvidos em empreendimento agrícolas. Um artefato humano é tão tecnológico quanto o sonar de um morcego. É porque pensamos que a tecnologia é um empreendimento da escolha de humanos que dizemos que o sistema de orientação de um míssil balístico é artificial e o olfato de um cão é natural. Se reconhecermos que estamos equipados para a reprodução como qualquer outro animal, veremos nossas ilusões como desesperados e contingentes expedientes de reprodução.
Mas nossa ideia de que a cultura humana e a civilização são formas superiores de existência não advém do fato de podermos preservar nossas vivências na forma de música, poesia ou romances. Ela vem da ideia enganosa de que somos seres autoconscientes, indivíduos com livre arbítrio que podem fazer o que desejarem de suas existências. Isto é um mito, tanto para a espécie quanto para qualquer individuo.
Este erro tem nos aproximado da beira da extinção em eventos recentes. Nossa ligação, em forma de rede ou teia de conexões, que se desenrolam ao longo do tempo é mais evidente do que a ideia de desenvolvemos alguma forma de destino, numa história a qual foi emprestada sentido por um deus pessoal.
Não estamos separados das demais formas de vida ou do esqueleto geomórfico que suporta a vida. Tudo o que há neste planeta foi forjado nas entranhas de estrelas que explodiram antes da formação de nossa estrela mais próxima. Todas estas partículas elementares bailam ao longo das eras e formam, ora uma pétala de rosa e ocasionalmente um tecido neuronal. Os eventos que a interpretação das coisas, na forma da linguagem, cristaliza em significado, são vazios de sentido autorreferente. As coisas são em um mesmo e único modo e princípio.
A tolerância com a diversidade da vida e com as formas diversas da vida social humana não é mais do que o reconhecimento da multimilenar fé animista: Somos um todo indiferenciado capaz de reconhecer sua unidade na diversidade de coisas do mundo. No entanto, nunca sem ter certeza de que tudo não passe de um sonho. Que talvez possa ser sonhado mais lucidamente, como escreveu Chuang-Tzu.
Acostumamo-nos a ver qualquer forma de cosmologia e ontologia como formas exotéricas de saber inacessíveis ao comum das miríades de humanos. Somente os iniciados poderiam saber, por teologias e filosofias, técnicas e ciências, sobre os fatos da vida. No entanto as religiões e filosofias que estão mais bem sintonizadas com as descobertas e evidências investigadas pela ciência contemporânea coincidem com os ensinamentos das mais antigas formas de crença humana.
Como ensinam os sábios orientais e os seus leitores ocidentais, como Schopenhauer e John N. Gray, depois de toda a filosofia e teologia acumuladas ao longo da confusa história da civilização humana, temos as mesmas razões de qualquer animal para crer que o sol vai nascer amanhã.