A menina do cartaz

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Sinto uma espécie de gratidão pelas pessoas que me presenteiam com pequenas histórias. Gratidão que parece ser atravessada por um sentimento de inquietude, impulsividade. Um desassossego que só cessa depois do esforço de registrá-las; de ver no escrito, um pouco que seja do vivido.

A tentativa de desafiar o tempo em sua velocidade, poder contrariá-lo na sua efemeridade com o exercício brincante de esticar as palavras pode ser um modo de expressar essa gratidão pelas histórias que me contam.

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Ela havia aceitado, mesmo que a contragosto, dar aqueles plantões noturnos no hospital público da cidade vizinha. Ali, para ela, plantão é pressa. Pressa e solidão. Solidão povoada por medos: medo de que algum acidente grave aconteça, medo de que faltem fios de sutura, medo de não ter o anestésico, medo de que alguém morra em suas mãos. Pois aquele era um desses plantões em que tudo parece ter esperado a  noite de sábado para acontecer. Duas vítimas de acidente, um queimado, uma criança em convulsão febril, complicações de dengue…

Já era alta madrugada quando, finalmente, pensou parar para um café. Porém, ao atravessar a sala, depara-se com o casal que acabara de chegar. Uma senhora de cabelos grisalhos, aflita, massageava o peito do marido sentado displicentemente na cadeira de rodas. Reconhecera os dois. Moravam na mesma cidade que ela – cidade onde atua no PSF.

A mulher relata que ele se queixara de uma forte dor. Ela se apressa em verificar respiração, pulso, medir pressão, auscultá-lo. Nada alterado. Pergunta-lhe onde está doendo, o que está sentindo. Apressa-se em saber como chegaram, por que ele está na cadeira de rodas.  A mulher responde: “É que lá na entrada tiraram ele da ambulância direto para a cadeira…” Ele, tranquilamente, sorri. Não responde.

Tinha os olhos fixos na parede da sala. A médica continua o exame. Não visualizando nenhuma alteração, insiste em apalpá-lo; continua: onde é a dor? Ele, com o rosto voltado para a parede da sala, apenas diz: “É mimosinha demais!” Quem? Apressa-se em perguntar, irritada. E ele, devagar, de vagar, num tempo que contrariava o tempo dela, aponta para a parede: “A menininha do cartaz”.

Elas voltam os olhos em direção ao lugar apontado: fixado com fita adesiva na parede da sala, num amarelado cartaz de campanha de vacinação onde não se identificava nem mais a data, uma criança exibia pura alegria.

A imagem a fez parar. Ignorando a irritação da mulher para com o marido, disparou a pergunta que puxaria o fio de uma conversa mais calma: sente saudades da neta?

Precisou assentar o seu tempo no dele – parou ao lembrar que há tempos devia-lhe uma visita. Caminhou a passos lentos pela noite em que ele precisou sair para sentir a chuva, as ruas; parou no momento em que ele preparou dentro de si a viagem na ambulância, na dor da falta; dor que só se suporta quando compartilhada.

Ao se despedir, prometeu-lhe a visita, mas antes de apressar-se novamente, lançou o olhar em direção à parede vazia da sala. Sorriu lembrando a imagem dele, agradecido, carregando debaixo do braço, a alegria que saltava do papel; a menina-poesia feita sem palavras, a “mimosinha” do cartaz…