Fragmentos da monografia: O que tem mudado e o que tem permanecido.
Sinto a necessidade de explicitar um dos pressupostos filosóficos que fundamentam minhas reflexões. A mudança na sociedade para mim é constante. Não é, no entanto unidirecional. A história é um ciclo recorrente de ascensões e quedas que não tem sentido além de si mesmos.
A noção de progresso que assumo é a de John Gray . Por ela observamos acumulação apenas no conhecimento expresso em forma de tecnologias cada vez mais complexas. Elas mudam o ser humano (e suas relações sociais intermediadas pelos artefatos tecnológicos) de modos que nunca podemos prever ou compreender completamente (Gray, 2007).
No entanto, na moral e na ética o ser humano, segundo as evidências empíricas, não pode mudar. Não pode sequer reformular-se de forma livre. Na visão darwinista do mundo, somos muito próximos dos demais animais. Um acidente com origem na mesma linhagem das bactérias primordiais.
O fundamento da ética é a busca da segurança e o evitar os recorrentes perigos intermitentes. Não há garantias no mundo real que nos livrem da colisão entre o certo e o certo para os diferentes (que Hegel definiu como sendo a tragédia). A equação de um modus vivendi onde a tolerância a diferentes modos de vida pode ser alcançada é difícil e sempre precária.
Ao ler os textos indicados (para esta segunda disciplina de nosso curso) me dei conta de algumas continuidades históricas que podemos constatar. Ainda carregamos as marcas claras de nossa identidade como nação. Mesmo em meio às aceleradas modificações sociais e tecnológicas que vivenciamos neste início de século podemos ver algumas continuidades. Meinerz e Caregnato fazem uma citação de um trecho da obra de Anísio Teixeira de 1956 (p. 12) que afirma que,
Se considerarmos o analfabeto, como seria lícito considerar, um elemento mais negativo do que positivo na população, a situação brasileira, do ponto de vista da educação comum, tornou-se em 1950 pior do que em 1900. Mas, se tomarmos o ponto de vista de que o processo educativo é um processo seletivo, destinado a retirar da massa alguns privilegiados para uma vida melhor, que se fará possível exatamente porque muitos ficarão na massa a serviço dos “educados” – então o sistema funciona, exatamente, porque não educa todos, mas somente uma parte.
Ora, este diagnóstico de Teixeira é similar, descontada a diferenças de entendimento peculiares ao ambiente teórico pós-moderno, ao de Dayrell[5] quando afirma que,
Dessa forma, a relação dos jovens pobres com a escola expressa uma nova forma de desigualdade social, que implica o esgotamento das possibilidades de mobilidade social para grandes parcelas da população e novas formas de dominação. Neste caso, a sociedade joga sobre o jovem a responsabilidade de ser mestre de si mesmo. Mas, no contexto de uma sociedade desigual, além deles se verem privados da materialidade do trabalho, do acesso às condições materiais de vivenciarem a sua condição juvenil, defrontam-se com a desigualdade no acesso aos recursos para a sua subjetivação. A escola, que poderia ser um dos espaços para esse acesso, não o faz. Ao contrário, gera a produção do fracasso escolar e pessoal. Como lembra Dubet (2006), o dominado é convidado a ser o mestre da sua identidade e de sua experiência social, ao mesmo tempo que é posto em situação de não poder realizar este projeto.
O escopo das duas análises cobre um período de 112 anos de nossa história. Muita coisa mudou nestas conturbadas 11 décadas.
Mas Anísio é mais bem sucedido no sentido de resumir uma meta narrativa que fundamenta a formação de nosso imaginário cultural: A desigualdade é um valor fundante de nossa cultura. Partindo deste pressuposto nossas instituições reproduzem na prática a visão de mundo que compartilhamos. A escola é funcional ao reproduzir a desigualdade social que é um valor cultural inconfessado.
Dayrell percebe as nuances das mudanças e modulações da produção da desigualdade em nosso país no contexto do século XXI. Passamos da sociedade dicotômica em que se deram os embates das grandes ideologias ocidentais – capitalismo e comunismo – para a sociedade complexa e multifacetada do século XXI. Nela a responsabilidade pela desigualdade é endereçada a gestão de si mesmo (Dubet, 2006).
Um Brasil com mais oportunidades é um país onde os fracassados são os edificadores de sua própria derrota. A grande institucionalização da obrigatoriedade da educação inclusiva produz a inflação desmedida e híbrida da produção de modos de ser. As instituições são fluídas e não carecem mais de muros. Meras portas separam modos de ser que coexistem em uma mesma pessoa:
– Um jovem comporta-se na escola do bairro de forma diferente da que se comporta no estabelecimento bancário onde faz estágio em meio turno. Trata o gerente, no banco, de forma muito diferente da que trata o professor, na escola. Mas também tem uma relação diferente com o professor quando o encontra no shopping center. E, é ainda outro no culto religioso de domingo ao lado da mãe ou da avó. Mas é também um terceiro ou quarto figurino que ostenta na rua, onde ocasionalmente é iniciado no uso de drogas. Também aprende outra face de si mesmo nas redes sociais da web onde cada vez mais nossos adolescentes são iniciados nas práticas sexuais.
Por trás do cínico discurso das oportunidades, esconde-se a aleatoriedade em que cada existência é confrontada com sua frágil e efêmera identidade. O bom filho pode não ser um bom aluno. E um aluno bom pode não ser um bom amigo. Tudo é precário e, assim mesmo, pode se solidificar na concretude dos gestos a que são remetidos os que estão em permanente formação.
Então, as instituições selecionam, a partir do acaso e das probabilidades, aqueles que sentirão os efeitos sólidos que são capazes de infligir aos “desajustados”:
– O professor que “abusa” do álcool é demitido.
– O aluno “desligado” em sala de aula é detido por porte de drogas e enviado a instituição de reabilitação do menor infrator, que é pior do que uma masmorra medieval.
– O aluno hiperativo encontra uma tribo em que lhe é possível desenvolver uma forma de pertencimento e desabrochar para a vida adulta sem maiores percalços.
Um encontro aleatório. Por afinidades nos modos de fazer que possam ser a música, a dança, o teatro ou o manejo de artefatos de tecnologia de última geração para expressão artística ou de laser. Tudo isso pode fazer a diferença e dar curso a existências plurais e multiculturais.
Mas a estatística dos destinos une Dayrell e Anísio Teixeira. Ainda somos um país que reproduz a desigualdade social de forma muito intensa. A partir das famílias, das comunidades, da escola, do mundo do trabalho, e assim por diante…
A ideia de sobreviver em meio a desordem, tirar a sorte grande é um modo de pensar a desigualdade como uma abertura. Enquanto a igualdade ainda é percebida como a permanente condição de risco. Pode soar absurdo, mas faz sentido para o senso comum. Pois é justamente essa igualdade que a desigualdade social produz: A permanente situação de risco.
Paradoxalmente o modelo de desenvolvimento social e econômico que orienta a nossa política educacional pressupõe um incremento no poder de consumo de nossas classes sociais C e B. Ou seja, a segurança e o conforto das classes médias dependem da melhoria no padrão de vida das classes pobres. Dito de outra forma: Nossa segurança ambiental, social, econômica e cultural está entrelaçada a forma maior ou menor de desigualdade social em que iremos ter de viver.
Nesse cenário de desenvolvimento econômico, baseada em incrementos na infraestrutura e no conhecimento aplicado, em que estamos implicados, teremos que diminuir as desigualdades sociais e formar um novo exército de técnicos de nível médio e superior. Pessoas capazes de produzir e consumir, tanto insumos concretos, quanto os frutos do trabalho imaterial, como o capital simbólico que circula na forma da moeda “acadêmica” do conhecimento.
Não o faremos executando o modo atual de ensinar e aprender praticado em nossas escolas.
Referências:
[1]Gray, John. Cachorros de Palha: reflexões sobre humanos e outros animais. 5ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2007.
[2] _________ A anatomia de John Gray. – Rio de Janeiro: Record, 2011.
[3] Caregnato, Celia Elizabete e Meinerz, Carla Beatriz. Educação e processos de escolarização no Brasil: perspectivas históricas e desafios contemporâneos. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 49, p. 43-62, jan./jun. 2011 43. Disponível em: <https://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos>
[4] TEIXEIRA, Anísio. Educação não é privilégio. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. v. XXVI, n. 63, 1956. Disponível em: <https://www.rbep.inep.gov.br/index.php/RBEP/article/viewFile/203/204>. Acesso em: 23 abr. 2011.
[5] Dayrell, J.A escola “faz” as juventudes? Reflexões em torno da socialização juvenil. Educação e Sociedade, Campinas, v. 28, n. 100 – Especial, p. 1105-1128, out. 2007. Disponível em: <https://www.cedes.unicamp.br>.
[6] DUBET, F. El declive de la institución: profesiones, sujetos e indivíduos en la modernidad. Barcelona: Gedisa, 2006.
Por Rejane Guedes
Querido Marco.
Acompanho tuas postagens e comentários com atenção e deleite, pois te considero um intelectual que concilia os referenciais teóricos com a prática vivenciada em seu cotidiano. Um militante em favor da VIDA enquanto potência política do existir.
Percebo que suas influências originais receberam contribuições de outros autores/pensadores ao longo de sua rica trajetória.
Conversar com você é sempre um grande prazer. Suas instigações animam meu pensamento.
Continuemos nessa estrada de fluxos que se rearranjam em cada instante.
Com admiração,
Rejane.