A violência e a maioridade penal
As vítimas que agonizam de forma barulhenta, são odiadas profundamente. Elas atrapalham o impulso moral que separa o mundo entre cidadão de bem e bandidagem. É uma forma simples de rotular e produzir a sensação de justiça racionalizada como retribuição. Mas o problema é que a metamorfose das vítimas até a condição de criminosos e vice e versa, atrapalha o (con)senso comum.
Os pressupostos filosóficos e ontológicos sobre a natureza do bem e do mal são vários. O que não muda é o desejo de culpar, punir e, finalmente, sacrificar alguém. Comodamente os mais fracos, vulneráveis, vítimas de negligências e de abusos se encaixam melhor no figurino do mal.
Numa vertente, a ideia é de que nascemos em um lado, ou outro. Depois fazemos escolhas segundo a nossa natureza inata. E então, devemos assumir as consequências do que não poderíamos evitar ter feito. A falácia lógica é gigantesca. Uns nascem bons. Outros ruins. Mas o que quer que façam ao longo da vida, é preciso que a cada um seja dado o que merece.
Só que não. Também há outros pressupostos. Na verdade, se tivermos a sorte de ter um bom berço, seremos bem educados e por sorte seremos bons. Assim, poderemos receber os créditos não merecidos de sermos seres do bem. Mas alguns, (esse é um terceiro pressuposto) a despeito de qualquer berço em que tenham nascido, escolhem ser ruins e, então, é justo que sofram as consequências de suas escolhas ruins.
Como já dissemos com Schopenhauer, a razão é a serva atormentada da vontade. Por trás de toda a racionalização sobre a maioridade penal há uma série de preconceitos funcionais e uma ferrenha vontade de infligir dor e sofrimento. Todo um conjunto de pequenas vontades sofismadas como desejo de justiça.
O que há de comum (entre as várias visões conflitantes a respeito da origem do mal) parece ser a herança que temos em comum com os leões. Quando em tempos difíceis, os leões, que vivem da caça realizada pelas fêmeas, conseguem acessar o ninho, e a despeito do zelo das leoas, comem seus filhotes.
Todo o dado estatístico e naturalista, despido da moralidade corrente, mas não sem uma moral, aponta que a criminalidade e a violência são multideterminadas. Além disso, assumem sua face mais concreta ao longo da vida adulta. A única justificativa para a redução da maioridade penal é o tráfico de atribuição de responsabilidade e um ódio ao ato da vida como potência.
No meu modo de ver os seres humanos sequer são muito diferentes dos demais animais. E diferem menos ainda entre si. Um grande escritor e um morador de rua não são diferentes por que o primeiro pode tentar imortalizar-se pelo talento.
Diferem porque o contexto histórico permite ao primeiro, lutar pelo que ao segundo não é permitido. Loucos, mendigos e gênios são desprezados e amados. Mas a condição deles é sempre muito próxima a dos párias e criminosos. Eventos, nada mais que fortuitos, nos fazem amar uns, odiar os outros e ignorar a maioria.
Gostamos de pensar que temos um caráter imutável.
O contraste com os outros nos ajuda a confirmar como verdade plena este mero desejo. Mas de maneira alguma a comparação constante que fazemos (entre nós e as pessoas malignas) prova o que tentamos confirmar ao longo da vida: que seriamos bons em, e sob, qualquer circunstância.
Ao contrário, este contraste reforça a evidência que somos (o que somos) devido a circunstâncias não escolhidas que nos favoreceram, se temos auto estima favorável. Os confortos que nos permitem ser altruístas em alguns momentos da vida, em geral foram conquistados em ações imorais de nossos antepassados de uma ou duas gerações anteriores. Até porque o moralismo muda nesse tempo decorrido entre as gerações antigas e a nossa. Recuando mais um pouco, sabemos que somente assassinato (em legítima defesa, mas não apenas) ou covardia bem sucedida é que sustentam a linhagem que chega até nós.
Mudam as circunstâncias e mudam as pessoas.
Os guerreiros são a confraria mais antiga e mais semelhante na história da humanidade. Sempre combatendo e racionalizando. Nós gostamos de morte e vingança. O sacrifício de inocentes é silenciosamente festejado em nome do espetáculo da revanche.
O Estado come seus filhos como os leões da savana mantém sobre controle o número de predadores em relação às manadas de herbívoros. Quando falamos de bandidagem e pessoas de bem não estamos falando de coisas tão diferentes. São dois lados da mesma moeda: a insana humanidade.
Guerreiros amam mais a guerra do que a vitória. Odeiam mais a paz do que os seus inimigos. Mas entendo o ponto de vista, dos que são a favor da diminuição da idade penal, assim como o dos que não a querem reduzir.
No que divirjo de ambos, é que penso que esta disputa em torno de ideias, vai aumentar em muito o número de vítimas. Porque, como na questão do aborto, na questão da religião ou do multiculturalismo, esse debate vai terminar em guerra e mais mortes. Mais cedo ou mais tarde.
Os guerreiros amam o ódio e a morte gloriosa. Mas precisam da moral para racionalizar seus crimes como justiça. Pessoas dispostas a matar há ao lado de todas as ideologias e muitas crianças e velhinhos estão entre os guerreiros, de ambos os lados. E os guerreiros sempre estarão bem servidos. Seja de razões, seja de vítimas.
Os dois lados têm razão: Querem calar, desejam eliminar o oponente, anseiam por guerrear, almejam o combate, querem matar e aspiram morrer saciados. Na verdade são inquietos e insaciáveis…
Por Sabrina Ferigato
Marco,
Esse tema é muito importante quando pensamos a humanização não apenas da saúde, mas de todas nossas instituições sociais.
Li um artigo recente da jornalista Eliane Brum que é muito bom sobre esse tema. Caso se interesse: "Pela ampliação da maioridade moral"
https://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2013/04/pela-ampliacao-da-maioridade-moral.html
AbraSUS
Sabrina Ferigato