Uns mais iguais que os outros…
Concordo com a ideia do crescimento do processo de democratização da participação e inclusão social das minorias no Brasil, especialmente na última década. No entanto, a extensão da dignidade humana na forma de atributo igualitário que nivela todos diante da lei, seja em direitos, seja em deveres, ainda não é plena. Grande parte da redução das desigualdades sociais em nosso país se deve a inclusão no mercado de consumo, apenas.
A cidadania como inclusão de todos no universo da dignidade humana, com o direito a diversidade cultural é uma equação de difícil solução. A limitação das políticas públicas começa onde a liberdade individual se alia a preconceitos, reducionismos e dogmatismos que separam as pessoas segundos distintos graus de valor.
A ideia de um único Deus que elege um povo para salvar, fere a pluralidade de crenças e cultos que coexistem na sociedade desde sempre. A fé de que a estrutura familiar é divinamente determinada em um modo único de estruturação, patriarcal e patrilinear, também é prejudicial a diversidade quando se reveste de um caráter dogmático e evangelista.
Podemos ver dessa forma como o pensamento religioso se estende para dentro dos ideais iluministas. Nosso humanismo é em parte, herança de um cristianismo paulino profundamente influenciado pelo platonismo. De outro lado, padecemos de um progressismo idealista, que não raro redunda em milenarismos e escatologia apocalíptica, mesmo que pretensamente laica. A ideia recorrente de que a história humana tem um sentido histórico e um fim, seja a redenção, seja o aperfeiçoamento indefinido, nos cobrou um custo alto ao longo do século XX.
Mas, paradoxalmente, é recorrente também a noção de que dentro do espectro do Estado democrático de direito (em que a igualdade formal impera no direito) há degraus de dignidade humana. Existem eventos, como acidentes e catástrofes coletivas, que deveriam corroborar a hipótese de que somos uma comunidade de destino, vinculados por riscos e perigos comuns. Mas a percepção midiática e do senso comum é oposta a tese de que formamos uma comunidade de destino:
– Há mortes que não poderiam, não deveriam e se e quando ocorrem parecem absurdas. A comoção pública recorrente é a expressão dessa indignação.
– Outras mortes, a maioria não acidental, ou resultado da negligência, são naturalizadas e recebidas com apatia ou uma surda satisfação.
Se pobres, negros e favelados são assassinados, parece que o senso comum se acalma. Afinal, no discurso subjacente, estão morrendo assassinados os que devem mesmo morrer. Aqueles que não é surpreendente que sofram.
Mas se um avião, lotado de crianças a caminho da Walt Disney World cai, a comoção geral e a indignação significam que estas seriam mortes não deveriam e não poderiam acontecer. Busca-se investigar detalhadamente a cadeia de eventos e os responsáveis pelo "acidente". Mas é justamente o contrário. Casos como esse são raros e a investigação das causas evita que eles se tornem rotina. Não pode, infelizmente, evitar que novas séries de eventos imprevisíveis causem outras fatalidades.
Entretanto, poderíamos ter menos assassinatos, menos violência urbana, menos criminalidade, como demonstra o estudo comparado das estatísticas de morte por causas externas entre as culturas e nações. Cito o Japão mais uma vez. Menor criminalidade e encarceramento, menos valores ocidentais, muito perigo de morte devido a catástrofes naturais que são riscos partilhados por toda a sociedade.
No Brasil, ser jovem, pardo ou negro, viver em uma periferia é suficiente para a diminuição significativa da expectativa de vida. Mortes precoces e cotidianas, claramente evitáveis, e, no entanto, escandalosamente naturalizadas e toleradas com uma espécie de surda satisfação. Acredito que por corroborarem o pensamento mágico e o mito. O mito de que em nosso país, uns são mais iguais que os outros…