A culpa e o poder.
Eu, vocês e o papeleiro da esquina já estamos no poder. O mundo é a soma dos erros e acertos de todo a humanidade. No formigueiro é assim. Mesmo todos cumprindo seu dever automaticamente, sem nenhum erro ou desvio, nada impede que um humano ou uma chuva causem uma catástrofe e centenas de milhares de formigas morram sem ter nenhuma culpa. São os caminhos em que os seres são lançados ao longo do tempo e do mundo. Pode haver alguma autonomia.
Mas será que não podemos nos conformar que ela de fato é pequena? Será que nossas grandes realizações políticas, filosóficas, tecnológicas não são a continuação natural do caminho iniciado pelas bactérias primordiais neste planeta, como afirmava Carl Sagan?
Nós podemos admitir que não somos diferentes de outros animais se vermos as coisas com menos paixão. Somos imperfeitos, e o que condenamos nos outros frequentemente é um impulso que conseguimos reprimir com custo.
Às vezes é uma inclinação que por sorte não temos e, se não temos, como podemos julgar alguém que a tem. Se alguém pudesse amar o crime como eu amo meu filho, sei que ele não poderia evitar de cometer o crime. Porque sei da força do amor que tenho por meu filho. Não sei muito mais do que isso.
Há soldados guerreiros na África que acabam viciando na adrenalina do combate e depois, mais tarde se apaixonam pela crueldade. Eu só os julgaria se tivesse em minhas mão uma AK47 aos 6 anos e fosse tirado dos meus pais, da minha casa e da minha cidade e levado para um campo de treinamento. E lá fosse treinado até aprender a matar. Até viciar na adrenalina do medo e do combate. Eles são educados ao ponto de desenvolverem a paixão pela crueldade. Vejo isso acontecer com jovens na periferia de nossa cidade.
Isso tudo pode acontecer a qualquer humano, sem que ele tenha como evitar de ir sendo o que se torna. Minha insignificância me impede de julgar as pessoas, por que sei que minha condição é privilegiada.
No entanto, não acredito que alguém esteja no poder com, mais ou menos intensidade do que eu neste mundo. O poder que um chefe de Estado tem, ou o que um dirigente partidário tem eu não invejo. Não invejo o poder dos juízes de direito e muito menos dos sacerdotes e pastores. São existências diferentes da minha, com trajetórias diferentes. Mas como ser humano me sinto igual a eles. Como as formigas em um formigueiro são iguais diante do pé de um humano que caminha despreocupadamente.
Somos parecidos demais para julgarmos os outros, em suas únicas e singulares circunstâncias…
Por Altair Massaro
A velha e incrível questão espinosana: o que pode um corpo?
Sobre dois aspectos. O primeiro diz respeito a velocidades e lentidões: considerando-se todo corpo como uma multiplicidade, quais velocidades o compõe? sob quais relações um corpo se decompõe?
Ainda sob outro aspecto, quais afetos um corpo é capaz de suportar? A quais afetos estamos abertos? Espinosa não cansava de desinvestir os gêneros e as espécies em prol das suportabilidades dos afetos, das paixões que nos atingem. Dizia: um cavalo de arado, do ponto de vista de sua afetabilidade, esta mais próximo do boi do que do cavalo de passeio.
É necessário produzirmos um lista dos afetos, um mapa daquilo que somos capazes de suportar, em oposição às origens e finalidades (obsessão da psicanálise). Ulpiano, em suas brilhantes aulas, trazia o exemplo do filme "Scar Face", onde Al Paccino interpreta um sujeito com um só afeto: o dinheiro. A insuportabilidade da vida o toma ao se deparar com o afeto de incesto (paixão pela irmã). Cláudio, neste momento nos lembrava que o carrapato possui quatro afetos vitais, como mostrava Uexküll em sua obra "Dos Animais e dos Homens", já nosso herói não passava de um único afeto; talvez como a maioria dos homens.
Gestão dos afetos: eis o grande investimento da nossa sociedade. O que podemos ou não gostar, o que devemos ou não acreditar, o que devemos ou não investir. Aí Marcos, entendo que resida nossa autonomia (deveria dizer liberdade?): traçar os mapas de nossos afetos e investir na abertura da vida, abertura ao máximo para as paixões. Correremos riscos sim, mas, ao mesmo tempo, ampliamos a possibilidade de bons encontros e, portanto, paixões alegres; e, sabemos bem, só a partir delas podemos atingir as ações, conquistar a autoafetação, a beatitude, como queria Espinosa. Claro, sempre em devir: liberdade (deveria dizer autonomia?) não se conquista, se exerce.