Liberdade e Vontade: A Avaliação como Método de Disciplina

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Em um passeio pelas redes sociais dei de cara com a foto acima; seria pouco provável que me chamasse a atenção não fosse a evidência do vermelho atribuindo um belíssimo zero àquela suposta prova. De qualquer modo, a coisa toda permitia muita reflexão.
Bem, iniciemos pela questão da liberdade para ver onde podemos chegar com isso. 

É clássico no pensamento ocidental, e leia-se, na cabeça da maioria de nós, associar liberdade à vontade. Entenda bem isso, pensa-se muito piamente – isso é decisivo – que vontade e liberdade estão absolutamente ligadas. Pergunte a qualquer sujeito na rua, no limite sempre se ligará a liberdade ao desejo, à vontade. Ou seja, toma-se o desejo como se originando no próprio sujeito e a sua plena realização designa a liberdade. Ainda uma vez: a liberdade nada mais seria que a possibilidade da realização do desejo, desde que o desejo, a volição, originada no sujeito. Livre arbítrio.
Isto é o clássico. Não pense que é pouca coisa, toda uma formulação filosófica, mas também sociológica, psicanalítica e mesmo no campo científico tem origem nessa premissa, que tem ares de solides e certa racionalidade.

Entretanto, há muito também em outros sentidos. Ao invés de tomar a liberdade como ligada a vontade livre, liga-se a liberdade ao campo do necessário. Isto causa mesmo muita estranheza: dizer que a liberdade é exatamente a observação do necessário.

Entenda-se necessário no campo das causas e efeitos, no sentido de "dado uma causa" tem-se necessariamente "um certo efeito"; Inversamente a "possibilidade" está no campo do contingente: "dado uma causa" um certo efeito "pode ou não" ocorrer.

No pensamento clássico, com forte fundamentação em Kant, afirma-se que no mundo sensível não pode haver liberdade, ou seja, no campo das causas e efeitos nada pode ser livre, uma vez que cada coisa, fato ou acontecimento é determinado por sua causa precedente, assim até o infinito. Para Kant, só haverá liberdade no campo da razão. O que ele quer nos dizer é que somente observando o Imperativo Categórico – ou seja, a Lei – pode-se experimentar a liberdade. Freud vai pelo mesmo caminho, no seu texto “Mal Estar na Civilização” mostrará a importância da introjeção da Lei, das normas sociais, na fabricação de um Eu útil socialmente.

Spinoza no séc. XVII, no entanto, havia traçado novas linhas. Para este pensador a liberdade, como de resto tudo o mais, só poderia ser experimentada no campo da vida. Em oposição à transcendência defendida por Kant e Freud, onde tudo é determinado e nada podemos fazer, Spinoza acredita na imanência. Há, evidentemente, a relação de causa e efeito, no entanto, longe de estarmos presos ao conceito do determinismo, tudo ocorre ao acaso dos encontros. De outro modo, não existe algo como uma prescrição dos encontros, um desígnio, no entanto, ao se dar um encontro, algo acontece numa infinita cadeia de causas e efeitos. A liberdade em Spinoza, mas também em outros pensadores com Nietzsche, Bergson e tantos outros na mesma linha, não esta em negar o nexus causal ou mesmo superá-lo por ações em outros mundos, sejam espirituais ou metafísicos. Um efeito a partir de uma causa necessariamente irá nos ocorrer, a liberdade esta exatamente no que faremos com o que nos acontece, não do ponto de vista moral, como prescreve Kant, mas do ponto de vista ético, da potência.

Ainda uma ultima questão: a vontade. Objeta-se a vontade livre, o livre arbítrio. Spinoza é muito claro, a volição nunca se origina no sujeito, nunca é livre, se não, digamos com Deleuze e Guattari, agenciada. O que isso quer dizer? Muito estranho ao pensamento ocidental clássico. Ligamo-nos a um fluxo de desejo. Ao exercermos nossa potência, nos coadunamos a um agenciamento coletivo, tanto no pensamento como no corpo: desejo. Mas não quer isso dizer que sejamos vitimas do destino ou daquilo que nos produz. Somos cúmplices deste agenciamento, escolhemos, de alguma maneira, por imaginar que nesta escolha nossa potência de existir irá ao máximo, a que ligaremos nosso desejo.

Neste ponto, um aspecto do nosso aluno da avaliação acima. Estaria nosso querido contestador exercendo um desejo livre ao escolher “dormir”, “jogar vídeo game” ou mesmo “mexer no computador”? Estaria ai a essência de sua liberdade? Considerando-se que estes desejos são produzidos no nosso aluno, mesmo que absolutamente por ele investidos, não se trata de fato de liberdade. Como vimos a própria assertiva, considerada no fluxo dos pensadores citados, admite que o exercício da liberdade resida exatamente em produzir algo de interessante ao que nos acontece. Se, sob seu ponto de vista, há um mau encontro entre a aula de filosofia e seus desejos momentâneos, não se podem evita-lo, o mau encontro, mas dele fazer algo de mais potente, de mais conveniente.

Mas tudo isso ainda não é ponto que gostaríamos de atingir. Algo de muito perverso está ocorrendo. O avaliador, sob o signo de uma vida muito potente, muito interessante, pede ao avaliado uma análise. Abstraindo-se uma certa deselegância em sua resposta, o aluno produz uma bela análise, colocando em xeque a própria condição de liberdade sob a qual reside. Ai o mais lastimável: nosso avaliador usa de toda sua condição de poder e, desconsiderando tudo o que não se coadune à sua própria condição, pune o avaliado com todas as armas que têm disponíveis. Disciplina. Exercício áspero do poder. O avaliador toma a avaliação como mecanismo de disciplina sobre o avaliado. Haveria muito o que ser considerado na resposta, mas está claro, não é disso que se trata, se não de subjugar sob certa condição o aluno: subjetivação.

Coloca-se, portanto, em questão a educação. O que fazemos ao ensinar? Sobretudo ao avaliar? Produzimos sujeitos disciplinados, uteis, assujeitados? Ou nos aliamos para a produção de mais potencia no pensamento, na existência e na vida? Há que se exercer prudência para ao tomar caminhos muito potentes, não darmos a ele um uso de puro exercício de poder. Não basta dizer “viva a liberdade” é necessário “exercer a liberdade”, investir na potência da vida. Mas, ainda de algum modo, viva nosso aluno rebelde!

Altair Massaro