Notas sobre o Caos: A crise da representação e a produção de sentido.
Já não se trata de malhar sobre o ferro quente. Temos de lidar com algo que suporte o metal líquido que escorre para o molde. Um molde desconhecido, (o novo quem sabe?) que acolha o que irá solidificar-se em novos objetos sociais. O metal líquido são as relações sociais aquecidas pelas formas de tecnologia que destroem algumas das categorias do Iluminismo. Em especial o instituto da representação política. Uma nova tecnologia muda as relações sociais e, em alguma medida, a própria natureza humana, seja lá o que entendamos por natureza humana. Não podemos reverter a um modo pré-tecnológico. Não podemos parar quando somos projetados na forma líquida em direção a novos arranjos de coesão social.
Meu paralelo, desde o início tem sido 1789. Tenho minhas razões para essa intuição ousada. O que significa a possibilidade de uma empresa privada conectar e armazenar toda a miríade de produção subjetiva em ato? Em que medida a mídia hegemônica tradicional foi reduzida a uma variável, em meio a muitas outras que podem produzir a informação e fazer circular o conhecimento?
Como obter sentido existencial na medida em que a filiação a alguma liderança paradigmática dá lugar a auto expressão? Se toda e qualquer pessoa pode colocar sua opinião pessoal na soma estatística que define a segmentação de singularidades em grupos de interesses, que lugar ocupará a representação ou a mediação realizada por atores políticos?
O Brasil em que o protestos se dirigiam para a contenção de ações políticas reprováveis não existe mais. É possível apostar que ele não voltará mais a existir. Hoje as pessoas estão nas ruas por uma série de razões difusas. Mas elas podem ser resumidas em um conjunto de expedientes ditados pelo bom senso e que os políticos tem resistido em implantar. O protesto é pelo óbvio que as instituições democráticas tem deixado de fazer, segundo a afirmação de um observador mais atento.
Tornou-se um lugar comum aceitar que os investimento públicos estavam sujeitos, inapelavelmente, ao fluxo de comissões por investimento (que a propósito, é natural nas operações do mercado privado). O caso é que esta comissão ou propina é crime nos contratos que envolvam dinheiro de impostos ou taxas. O montante de comissões pagas pela realização de obras públicas licitadas é significativo. A renda dessa comissão abastece o fluxo de dinheiro que alimenta as campanhas eleitorais, tornando o sistema político uma falácia ou cena de representação formal. O essencial ocorreria longe dos olhos do cidadão. Mas o rei novamente está nu.
As ruas estão a dizer que este custo é inaceitável. O custo da corrupção torna ineficiente os gastos legais, o investimento no trabalho e a qualidade da prestação de serviços. Além do valor desviado, há o custo em coesão social. Os investimentos anêmicos em saúde e educação reforçam a anemia e fragilidade dos vínculos que unem e fortalecem a coesão social. Assim, a atomização dos afetos fragiliza e torna precária a saúde mental. Onde a sanidade deveria se produzir, tem-se a produção de doença, num circuito em que o capital monetário não é uma variável essencial.
Este é outro aspecto destes protestos: Onde as necessidades vitais de alimento e abrigo vão sendo resolvidas, permanece a questão da identidade, da produção de si mesmo. Este problema é acentuado na medida em que as coisas que adquirem valor simbólico quando a miséria material é superada, não são as mesmas em cada giro da roda da história. A ascensão das classes C e B no Brasil das últimas décadas, ocorre num contexto de valores plurais, contraditórios e eivados de intolerância.
Sociedades plurais em que a diversidade cultural é a norma, só podem manter-se agregadas se o valor da tolerância e da solidariedade pairar sobre os da diversidade. A polifonia exige tolerância. A garantia da singularidade é o respeito a diversidade.
Talvez este seja o grande aspecto positivo desta mobilização das ruas e do espaço virtual: Todos tem voz e a crítica tem se dirigido as vozes da intolerância. Assim, militantes do PCO são tão hostilizados, quanto os que tem saudade do Regime Militar, ou os neonazistas. O perigo são as ações sob falsa bandeira que elementos infiltrados nas passeatas podem fazer. Lembremos o episódio do Rio – Centro em 1981.
Por isso os atores tradicionais da direita e da esquerda estão atordoados. Ambas as posições são remanescentes do cristianismo e fundam-se em atributos de fé: A proposta da emancipação humana dependia da eliminação de um dos polos. E curiosamente, tanto liberais, quanto socialistas afirmavam que o outro é que era a barreira que impedia a instauração do paraíso na terra. Os escombros dos grandes projetos progressistas do século XX, que apostavam no modelo econômico como um caminho para a redenção da humanidade, constituem os pés de barro de cima dos quais o instituto da representação parece estar desmoronando.
Os caminhos que podem ser cartografados são os do presente e a arqueologia se faz sobre o que resta do passado. Mas em relação ao futuro a incerteza é grande. Como o espaço de interação e acumulação de energia cinética são as redes sociais em ambientes virtuais da internet, podemos projetar alguns cenários:
1. O sistema político se modifica para incorporar à governança os instrumentos da participação direta da cidadania. Mas isso integra um novo risco. A arquitetura das redes abertas é executada em grande parte no ambiente privado de grandes corporações. Ousaria algum governo, se a crise se acirrar, em tirar do ar os sites sociais onde a diversidade encontra a sinergia para chegar nas ruas?
2. As mudanças são acolhidas, mas aquelas que se fazem para que tudo siga como está, acirram a revolta. Um recurso, uma vez provada a sua eficácia, jamais é abandonado. Foi assim com o fogo, com a roda e com a escrita. Há momentos de retrocesso, a ciclos de barbárie e civilização, de democracia, de anarquia, de tiranias e de totalitarismo. Mas uma técnica bem sucedida só pode ser eliminada, se seus usuários forem destruídos também. Então, aposto que desta vez não vai dar para fazer de conta. Mudanças efetivas serão necessárias. O abandono das ruas não se dará pelo esvaziamento. As pessoas podem voltar para casa vencidas, mas será apenas para se reagrupar e disputar novas batalhas no futuro próximo.
3. Cenário de escatologia milenarista e apocalíptica: Este é recorrente e no curso da história o 11 de Setembro, as guerras contra o terrorismo, a Primavera Árabe e tudo mais, são apenas instantes. Pode ser que em algumas semanas tudo pareça ter voltado ao normal, como foi em Nova Iorque após os ataques terroristas. No entanto, sabemos que o mundo nunca mais voltará ao ponto em que estava antes dos ataques terroristas de 2001. Se foram ações sob falsa bandeira, como outras vezes já ocorreu, ou se foi a mais espetacular ação de um único grupo, talvez nunca possamos saber com certeza. Mas aí entra o fato de que atos individuais, são em parte, ações para atribuição de sentido a existências que de outra forma restariam significadas por preconceitos e reducionismos. O que nos leva ao cenário 4.
4. As pessoas, humanos individuais, encontraram uma forma de preservar suas existências e lhes atribuir um valor contra a lei da entropia e do esquecimento. Nossos falecidos amigos continuam a enviar lembretes de seus aniversários pelas redes sociais. Fazendas de servidores no ártico guardam fotos de nossos bebes recém nascidos. De certo modo, o anonimato tornou-se efeito da expressão em massa das existências. Por que todos, e cada um, podem ser vistos, ninguém de fato é menos do que um anônimo.
Afinal, precisamos de motores de busca, como o Google, que executam elaborados e complexos algoritmos, para fazer emergir um rosto e uma identidade na velocidade da luz. A identidade humana hoje não pode ser discernida, identificada, sem os artefatos que os humanos criaram. Alguns são prefigurações de inteligências artificiais que já são capazes de computar e calcular com uma eficiência maior do que a de qualquer humano isolado, ou de muitos trabalhando em conjunto. Só lhes falta produzir sentido. O mesmo que sem nossos artefatos, já não conseguimos produzir.
Uma emoção difusa paira no ar. Precisamente por ser o que é, não podemos focar ainda. Está logo ali, depois da esquina esfumaçada pelo gás lacrimogêneo. Mas a fumaça vai elevar-se. O novo contexto social irá se tornar mais claro a cada passo. Ele emerge de nossas interações caóticas e um novo presente está por aflorar. E quando vier será como a queda da União Soviética, como estas manifestações que fazemos ao assisti-las: As curvas da história confundem nossas projeções e a maior expressão de uma hegemonia ou paradigma se dá em seu ápice. Deste ponto máximo é que a queda começa.
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Linda imagem, Marco, dos efeitos dos movimentos sobre as subjetivações em jogo. Não mais o malhar em ferro quente, mas as possibilidades de dissolvência das cristalizações dos modos de vida que não mais nos servem como antes.
Mutações coletivas e não teleológicas.
um grande beijo,
Iza