Viver não é sobreviver: para além da vida aprisionada – segunda parte

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christ & gantenbein
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continuação da fala de Peter Pal Pelbart no III Seminário Internacional A Educação Medicalizada

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O desejo, segundo Deleuze e Guattari, é o irracional de toda a racionalidade. Implica uma ruptura de causalidade. Rompe com causas e metas. A única causa do desejo é uma ruptura de causalidade e embora se possa e se deva assinalar nas séries atuais os fatores objetivos que tornaram possível tal ruptura, com elos mais frágeis, só o que é da ordem do desejo e de sua irrupção dá conta da realidade. É uma posição assumida de maneira muito categórica por Deleuze e Guattari, desde o Anti- Édipo até o final de sua obra. Eu vou pular aqui um pedaço que nos levaria muito longe.

Eu queria dizer que o desejo tem tudo a ver com a força do intempestivo, com os devires minoritários, com as máquinas de guerra que vão se inventando em todos os contextos, inclusive isso que vocês montaram aqui é uma máquina de guerra no interior de um campo muito mapeável. O desejo tem a ver com todos esses acontecimentos que não podem ser reduzidos à história da qual eles desviam. O desejo tem algo a ver com o corpo-sem-órgãos e com os agenciamentos que fazem saltar pelos ares o esfriamento ou esse monitoramento biopolítico do sócius. Então, eu agora vou dar um salto mortal antes de terminar, porque não é um salto de ampliação, mas um salto prá um contexto muito singular da minha prática e que talvez tenha algo a ver com aquilo que vocês estão tentando pensar e redesenhar. Eu trabalho já há mais de dezessete anos com uma companhia teatral com os chamados usuários de saúde mental, numa atividade dita artística. Companhia Teatral UEINZ. Vou falar muito pouquinho… Num extremo de vida nua, como a dos ditos loucos, isto é, de uma vida precarizada ao máximo, desapossada de todos os penduricalhos civilizatórios, submetida a todas as exclusões imagináveis, a todas as violências, aos esmagamentos todos…como é que justo aí, nessa espécie de ponto zero social e psíquico, uma subjetividade esquizo, ao invés de se tornar um obstáculo à criação estética, torna-se precisamente a fonte maior, a matéria prima por excelência para a criação de uma obra. A vida no seu estado extremo, tal como a do presidiário, mas mais radicalmente, revela como que o seu avesso inesperado. Maneiras menores de ver, de sentir, de pensar, de perceber, de vestir-se, de viver estão em cena. O que é posto em cena é essa fronteira onde arte e vida se confundem, uma maneira de representar sem representar, de estar no palco e se sentir em casa simultaneamente. De associar dissociando, de dar a ver o horror da vida a partir de signos de gagueira, de extravio, de desmanchamento, mas transmutando tudo isso em acontecimento jubiloso e estético. A partir da vida nua e de um corpo que não aguenta mais as coerções e os adestramentos que sobre ele se exercem. Não se trata aí de domesticar ninguém, de recorrer a formas de vida prontas que compensem ou camuflem o desmanchamento, mas sim de sondar o âmago dessa "passividade"para ali encontrar um poder de afetar e de ser afetado inimaginável. Na língua de Espinosa, o poder de afetar e ser afetado equivale à potência. Portanto, como encontrar no âmago da impotência, a potência máxima. Claro que a partir desse exemplo que é diminuto, é toda uma ética que se desenha nas antípodas de qualquer fascismo ou normatização, seja nas suas versões clássicas ou pós modernas ou pós humanas. Eu definiria essa ética da seguinte maneira: ter a força de estar à altura da própria fraqueza, ao invés de permanecer na fraqueza de cultivar apenas a força. Isso é fascismo, cultivar apenas a força.

No fim da primeira apresentação que o nosso grupo fez há dezessete anos atrás, os atores chegaram ao camarim eufóricos, felizes, preenchidos, gritando "estamos curados!" Não se trata de acreditar nem de duvidar disso literalmente e sabe-se lá o que isso significa, mas eu diria que o dispositivo teatro ajudou a curá-los e a nós também de uma série de cacoetes, por exemplo do cacoete de reduzi-los a personagem exclusiva chamada doente ou doente mental, papel a que muitas vezes eles mesmos se aferravam monocordicamente, embora quando um jornal da cidade os chamou assim, a indignação tenha sido geral. Eles eram atores e não doentes mentais, doente mental é o jornalista, obviamente. Seria preciso então deixar de representar monotonamente sempre a mesma pecinha hospitalar e edipiana. Abrir portas e janelas, mudar de teatro, mudar de cena, o que haveria de mais radicalmente analítico do que produzir uma outra cena, transformando as coordenadas de enunciação da vida?

Eu vou em direção das minhas parcas conclusões. Talvez Foucault continue tendo razão. Hoje em dia, ao lado das lutas tradicionais contra a dominação, por exemplo de um povo contra o outro, e contra a exploração de uma classe sobre a outra, é a luta contra certas formas de assujeitamento, isto é, de submissão das subjetividades que prevalece. Como pensar as subjetividades em revolta? Como pensar a capacidade de constituir territórios subjetivos que comportem linhas de fuga e desterritorializações diversas? Não é fácil fazê-lo num momento em que, como diria Kafka, sofre-se de enjôo marítmo mesmo em terra firme. Como mapear o sequestro social das vitalidades, mas igualmente as estratégias de reavivação social de constituição de si, individual e coletiva?
Eu vou terminar com uma frase que o Kafka disse a um jovem poeta que o visitou e que trinta ou quarenta anos depois – Kafka já havia morrido – resolveu publicar. E quando ele diz a Kafka: vivemos num mundo destruído? Kafka responde: "Não vivemos num mundo destruído, vivemos num mundo transtornado: tudo racha e estala como no equipamento de um veleiro destroçado". Acabei!

Eu pulei uma última frase que vou ler… estou tentando abreviar o vosso sofrimento… Mas, eu vou citar o Negri, com todas as reticências, mas é um pensador importante para o nosso terceiro milênio…prá não ficar no veleiro destroçado como expressão final. O Negri diz uma coisa simples, eu cito e termino com ele: "ao lado do poder há sempre a potência, ao lado da dominação há sempre a insubordinação e trata-se de cavar, continuar a cavar a partir do ponto mais baixo. Esse ponto é simplesmente aquele onde as pessoas sofrem… ali onde elas são mais pobres e mais exploradas, ali onde as linguagens e os sentidos estão mais separados de qualquer poder de ação e onde, no entanto, ele existe pois tudo isso é a vida e não a morte.