A vida contra a morte – Ruy Castro

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Aconteceu outro dia. Por minha sugestão, um repórter foi entrevistar o Dr. Jacob Kligerman, uma autoridade em pescoço e cabeça e um dos cirurgiões mais respeitados do Brasil. A matéria era sobre alguém que enfrentara um tumor brabo, de base de língua – por acaso, eu próprio -, e, graças aos médicos, vivera para contar a estória. Como não faço segredo dessas coisas, instruí o repórter a ouvir Jacob, um dos médicos que me trataram. Só não esperava a história que ele contaria rindo para o jornalista:

   "Quando era dia de consulta do Ruy, eu dizia à secretária para marcar dois horários. Um, para eu tratar dele. Outro, para ele tratar de mim."

Queria dizer que se empolgava com o estado de espírito com que eu entrava em seu consultório, talvez diferente de outros de seus clientes, a ponto de ser recebido por ele com frases como:

   "Puxa, Ruy, ninguém te derruba, heim?, ou coisa do gênero. E de como esse otimismo lhe fazia tão bem quanto a mim.

De fato, alguns meses antes, quando Jacob me passou o diagnóstico definitivo sobre a doença, meu único comentário para Heloisa e para ele foi: "Poxa, vou atrasar meu livro."

Naquele dia, em fins de janeiro de 2005, eu estava finalmente começando a escrever o texto de Carmen – Uma Biografia, sobre Carmen Miranda, que combinara entregar à Companhia das Letras em junho ou julho, o que permitiria a sua confortável publicação em outubro daquele ano. O processo de efetivamente escrever o livro culminaria um trabalho de investigação e pesquisa que começara quatro anos antes e no qual eu ouvira cerca de duzentas pessoas – várias vezes cada, num total de quase mil entrevistas -, e que resultaria ( embora eu ainda nem desconfiasse disso ) num texto de dois milhões de caracteres.

A produção de uma biografia é um trabalho lento e minucioso, envolvendo a difícil localização das fontes de informações ( muitas delas, homens e mulheres de idade avançada, sumidos há anos e não se sabe nem se estão vivos ), a captura dessas informações ( por entrevistas com as tais fontes ou pela leitura de toda espécie de documentos ), sua organização em arquivos e, finalmente, o ato de escrever. De todos os quesitos, o mais fácil é este último, mas nnao o menos penoso – porque exige dedicação integral, muita concentração física e, de preferência, uma cabeça inteiramente voltada para o trabalho. Não é aconselhável começar a produzir o texto de uma biografia quando se é obrigado a sair de casa todos os dias para fazer radioterapia, uma vez por semana para se submeter a uma químio e ainda viver sob a perspectiva de uma longa cirurgia, a qual se confirmou. Tudo isso era o meu caso, mas eu não tinha escolha.

Desde o começo, eu "não quis" ter escolha. Não vou perder tempo com essa doença", disse a Heloisa e Jacob. "Vou cuidar do tratamento – e o Carmen vai fazer parte dele."

Não sou a pessoa mais indicada para descrever o que se passou neste período. Só sei que aproveitei cada minuto na sala de espera da radiologia da Clínica São Vicente, na Gávea, e cada hora de aplicação de quimioterapia no Largo do Machado para consultar anotações, reler o texto escrito, canetá-lo, copidescá-lo, reorganizar as informações. E passava o maior número de horas por dia no computador, escrevendo, tudo isso enquanto tentava me alimentar, apesar da dor para engolir e do fato de que qualquer coisa que ingerisse tinha gosto de carpete ou de cabo de guarda-chuva.

Heloísa não foi apenas minha companheira em tempo integral. como escritora que também é, teve cabeça para anotar todos os duros passos que nos couberam naquele período. E resumiu tudo num texto para um livro, "Álbum de retratos", que publicou pela a Editora Folha Seca:

"Entre o dia 28 de janeiro de 2005, dia do diagnóstico, e 4 de outubro seguinte – dia em que Ruy pôs o ponto final no livro ( Carmen ) -, foram 34 sessões de radioterapia, num total de 93 irradiações, sete sessões de quimioterapia, com 21 horas de aplicações, 29 consultas médicas, mais 15 consultas ao dentista, cinco biópsias, uma endoscopia, cinco exames de sangue, duas ressonâncias magnéticas, duas chapas de pulmão, um raio-X completo da boca, uma cirurgia com duas passagens pelo centro cirúrgico e seis dias de internação, mais 19 punções e 61 sessões de fisioterapia."

Seguem-se outras descrições que não vou reproduzir, mas revelam a difícil realidade daquela situação.

Difícil, mas que tinha que ser enfrentada, e Carmen Miranda foi uma força inspiradora: eu não podia fracassar diante daquela mulher tão forte e talentosa, tão viva e esfuziante. Apesar da doença, tinha de estar à altura dela para escrever – e a maneira de fazer isso era combatendo a morte com a vida.

Daí as brincadeiras com Jacob ( e com os outros médicos ) ao entrar em seu consultório. Carmen, muito atrasado, chegou às livrarias no começo de dezembro e, mesmo assim, por um tour de force da Companhia das Letras, que só faltou parar com o resto de sua produção para conseguir lançá-lo no final do ano.

Dr. Jacob foi a primeira pessoa a quem mandei o livro, no dia mesmo em que ele saiu da prensa. Uma semana depois, houve a noite de autógrafos, no Golden Room do Copacabana Palace, antigo reduto de Carmen. Sentado atrás de uma mesa, autografando sem parar, vislumbrei Jacob lá longe, no meio da fila, que parecia não avançar. Ele percebeu quando olhei para ele e soltou a tirada:

    "Ruy, nunca te fiz aguardar tanto na minha sala de espera!"

Quando finalmente chegou à mesa, abraçou-me comovido e comentou:

     "Esse tratamento que você fez costuma levar um ano. E, agora, ao ler o livro, vejo que ele também deveria levar um ano só para escrever. Mas você fez as duas coisas no mesmo ano. Como conseguiu?"

      "Porque você não me disse que era impossível!", respondi.

Um ano depois, Carmen – Uma biografia ganhou o prêmio Jabuti de melhor biografia e Livro do Ano na categoria não ficção. Dediquei esses prêmios aos médicos que me trataram. Nos anos seguintes e até hoje, continuei indo ao consultório de Jacob, para exames periódicos, só que a intervalos cada vez maiores. Mas, mesmo que um dia ele me libere de vez, não quero deixar de visitá-lo. Ainda não rimos tudo.