E quando observo um SUS marginal me beijam as lágrimas.

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█ Era uma manhã chuvosa, aquela onde os pingos pesavam o chão que lá fora era devastado pela correnteza que se formou, diante de nós, dos olhos acolhedores, a manhã que começou, nebulosa, pois as nuvens estavam cinza, estavam escuras. O cumprimento educado e essencial ecoava: Bom dia jovem, senhor ou senhora, bom dia criança! █

█ Pouco a pouco, aquele espaço que molda o nosso cotidiano em saúde vai se enchendo, pessoas diversas, diversidade e os setores, os serviços, vão lentamente se iniciando, mas onde está o arquivista? Um Agente de Saúde retirou os muitos prontuários, com capas rasgadas, informações imprecisas, alguns sem as evoluções do cliente (usuários) e ele, o Servidor, escuta a impaciência do moço que chegara primeiro e não encontrara sua ficha já devidamente retirada, então onde estão os arquivistas? O Agente, de novo e prontamente, vai ao arquivo e retira, desta vez os prontuários para o registro na evolução dos bebês, era semana de campanha e de atualização vacinal, o Agente respira, inspira e acolhe aquela moça que chega cabisbaixa e num temor incomum, pergunta como faz para ser atendida por um médico, mas antes da resposta do arquivista, quer dizer do Agente, ela dispara que não mora no bairro, mora num outro, mas fala num tom menor, envergonhada, contida, então o Agente é advertido por um outro cliente que agora pede o número do telefone do Distrito Sanitário, além de querer falar com a gestão local que ainda permanecera ausente, mais ao fundo, um toque de celular estridente compõe aquela manhã onde o teto da USF está úmido e jorrando chuviscos perenes, salas inundadas, pois chove lá fora e começa a chover também aqui dentro inevitavelmente. Alguém pergunta se as referências já retornaram, pois são intensas as horas, tudo está lento, está letal.

O Agente de Saúde, por algum motivo faz chover em seus olhos, mas em silêncio, deglute a saliva daquela manhã e retoma o diálogo com a moça do outro bairro e pergunta se é a primeira vez que ela vem, ela responde negativamente, a jovem  dispara dizendo que buscou o serviço de saúde por algumas vezes, ali mesmo, mas foi tratada com repúdio, pois como era de outra área adescrita, não poderia ser atendida, tampouco cadastrada, isso segundo a mesma num tom severo e autoritário. Quem duvida? A moça se descompassa no seu discurso e diz que agora soube que pode ser atendida, por que tem as portas abertas, por isso veio. O Agente no decorrer da escuta nota que a jovem se contorce, franzindo sua testa discretamente.

Devidamente orientada sobre a rotina de trabalho da USF, a moça retorna na tarde do mesmo dia para agendar a consulta, pois duas equipes teriam agendamento naquela tarde chuvosa que chorava lá fora, mas a moça foi advertida que seriam 04 vagas para os chamados "Fora de área", faço então minha inferência enquanto narrador: mas não eram portas abertas?

A jovem de idade tenra, permaneceu lá fora e esperou a reabertura da USF para conseguir sua consulta e conseguiu naquela mesma tarde, veio sem demora agradecer com um sorriso franco e notadamente com olhos chuvosos ao Agente de Saúde que também chovia por dentro. Mas naquela tarde ao sair do consultório se deslocou ao serviço de acolhimento, o Agente, agora tinha outras ajudas, outros colegas, outros afazeres, outra rotina,  ela, a moça de cabelos longos com fios brancos  perguntou a um outro como marcaria aqueles exames, as referências solicitadas pelo médico que não sorria, disse ela.

O outro que a escutou, também escutará  a Outro, esse Outro que falava perguntou se era possível um jeitinho, para sair mais rápido, o Outro piscou o olho, fez sinal positivo e ficou com o documento, a moça que tinha a mesma referência percebeu o tamanho constrangimento daquela cena marginal.

O agente que a acolheu naquela manhã, agora distante a compreendeu, percebeu seus olhos contidos!

Ela, desmotivada, saiu suave, saiu naquela simplicidade que chegara, talvez sentido desilusão e perguntando porque comigo não? 

É desse SUS, de quem o faz, despreparado e ineficaz que agora narro numa ficção, se real ou não, cabe a vós a resolução.

A moça ainda voltou e ainda nada marcou!

O Outro que piscou, ainda pisca, ainda faz um SUS que desfaz!

O Outro ainda não percebe que:

Acolher é ter a capacidade de aguçar os sentidos e através deles humanescer, quando num olhar doamos_nos em ternura, num tocar percebemos_nos sensíveis, no sabor partilharmos dos saberes mútuos, sentindo portanto o cheiro suave de cada vida acontecendo, é saber ouvir as palavras como poesias capazes de se reencantar numa sinfonia em construção.

Djairo Alves

Por um SUS desmarginalizado e verdadeiramente equânime!