Atenção primária de saúde no viés da academia

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   Desde 1988, a partir da elaboração da Constituição Cidadã, nós brasileiros, passamos a vislumbrar um novo modelo organizacional de saúde pública – O Sistema único de Saúde, cujos princípios norteadores são: integralidade, equidade, universalidade, descentralização, regionalização, hierarquização e a participação social dos serviços; princípios estes que  superam de longe os principais modos de organização da saúde pública mundial. O modelo do Sistema Nacional de Saúde, datado do período militar, apresentara-se obsoleto, ou melhor, insuficiente para as novas necessidades de saúde em questão, por volta das décadas de 80 e 90, e nesse contexto foi implementado o SUS.
   O que esse novo modelo de saúde tem de inovador, infelizmente, também tem de contraditório. O mesmo paradigma criador do Programa da Saúde da Família(PSF), implantado em 1994, que constitui estratégia central do processo de reorganização do SUS e tem por objetivo imprimir uma nova dinâmica de atuação nas Unidades Básicas de Saúde, responsáveis pelo primeiro nível de atendimento do sistema, através das estratégias de territorialização, atendimento ambulatorial com visitas domiciliares, educação em saúde, vigilância epidemiológica, além  da articulação com outros municípios.
     Infelizmente, ainda há falhas na perfeita implementação desse sistema, e, entre essas falhas, há muitas vezes a falta de articulação entre o CAPS e a UBS, trazendo prejuízos no apoio à população que necessita dos serviços adicionais oferecidos pelo SUS através do CAPS. Um outro problema bastante evidente consiste na territorialização da unidade de saúde, que precisa de revisões constantes para acompanhar devidamente as mudanças estruturais e conjunturais da população ao redor, algo que nem sempre é possível, criando uma defasagem entre o serviço oferecido e as necessidades da população.
    Nesse sentido, ainda seguindo o viés conflituoso entre a teorização e a prática do SUS, observamos inúmeros casos. Um conflito bastante recorrente é o do projeto terapêutico que consiste na persistência do uso das tecnologias duras e leve-duras, em oposição às tecnologias leves, que se baseiam no reconhecimento do usuário enquanto indivíduo fundamental, co-autor do processo saúde-doença. Portanto, segundo esse conceito, a origem social, relações sociais e familiares, condições de vida, de moradia, dentre outros fatores são utilizados ao se fazer o  diagnóstico do paciente.
Em outras palavras, o uso da tecnologia, ou seja, das tecnologias duras pelo SUS é algo fundamental, mas o cerne do serviço deve sempre estar focado no uso das tecnologias leves. Nas palavras de Cecílio (1999) “Em se ter ‘boas condições de vida’ […] ter acesso e se poder consumir toda tecnologia de saúde capaz de melhorar e prolongar a vida […]criação de vínculos (a)efetivos entre cada usuário e uma equipe e/ou um profissional […] necessidade de cada pessoa ter graus crescentes de autonomia no seu modo de levar a vida”. O empenho dos profissionais da atenção básica, somando as noções de técnica e cuidado ao indivíduo fazem toda a diferença para que se alcance o objetivo do tratamento que preconiza esse novo paradigma.
    Um exemplo perfeito desse tipo de atendimento é o que encontramos na UBS do Panatis, em Natal, no Rio Grande do Norte. Apesar de todas as limitações agora impostas pelas adversidades, como a divisão do espaço físico com a equipe da UBS de Bela Vista, a unidade foi o local de nascimento de um projeto que hoje serve de exemplo nacionalmente: A “Tenda do Conto”, exibido recentemente na II Oficina dos Curadores da IV Mostra Nacional da Atenção Básica. Esse projeto tem como objetivo promover maior integração entre os profissionais da saúde e os usuários de suas respectivas unidades; nele, cada participante traz um objeto de estima, e conta aos demais participantes a história daquele objeto. É um momento mágico e muito emocionante, onde cada um recebe a atenção dos demais e torna-se protagonista da vivência naquele ambiente e com aquelas pessoas, sendo devidamente valorizados e reconhecidos, tornando-se muito mais que pacientes. Essa troca de vivência mútua é um verdadeiro aprendizado, com várias experiências alheias muito interessantes, ouvindo pessoas sábias que tem muito a nos acrescentar, além de praticar o exercício da escuta- o  que é raro na atualidade.
    O mesmo local onde nasceu a “Tenda do Conto” também possui outros projetos, como o “Posso Ajudar?”, em que sempre há um agente de saúde na sala de espera da unidade, pronto para tirar as dúvidas daqueles que buscam atendimento e informações, auxiliando-os de acordo com suas necessidades. Esse trabalho se mostrou bastante eficiente, diminuindo o tempo de espera para as consultas e contribuindo para melhor organização nos arquivos e nas consultas referenciadas, além das salas de vacinação. Os usuários também vêem nesse trabalho uma forma de participar da construção da UBS, podendo criticar ou sugerir formas de melhorar o atendimento. Há também a realização do CD Coletivo, um projeto que reúne mães e filhos não apenas para atendimento pediátrico, mas para conscientização a respeito da saúde infantil, como a importância do aleitamento materno e como acompanhamento do crescimento e desenvolvimento da criança (sabendo peso, estatura e alimentação), além de ser um espaço para estreitar os vínculos entre as mães e seus filhos, e para que mães conversem e compartilhem experiências entre si, dando mais segurança e conforto a elas, além de um momento especial com o filho que muitas não teriam oportunidade. Há também registro do momento por meio de fotos nas quais uma fica com a família e outra fica na sala do CD em um painel.
      Todos esses projetos fazem um grande diferencial na forma de atender à população, algo que vai muito além da simples cura, consistindo na essência do cuidado, tão necessário ao modelo atual adotado para o atendimento na atenção básica. É graças ao empenho de profissionais como os da UBS do Panatis que o SUS no Brasil se adequa e fica cada vez eficiente e, acima de tudo, cada vez mais humano, oferecendo a todos os que buscam ser atendidos, acolhimento em seu momento de maior fragilidade, que muitas vezes excede a dor física, tratando com cuidado, numa verdadeira demonstração de amor não apenas à profissão, mas aos usuários e à saúde básica. A esses profissionais, prestamos homenagem e declaramos nossa sincera admiração, no intuito de reconhecer a importância de seu trabalho e dizer que esperamos, como futuros profissionais da saúde, seguir seu valioso exemplo, bem como possibilitar um estímulo para que essa sensibilidade e humanização persistam no trabalho com a comunidade.