Mensagem de Regina Benevides para os 10 anos da PNH

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Washington, 26 de Novembro de 2013.

Queridos amigos,
Aqueles que me conhecem sabem que gosto das cartas, dos pequenos textos que misturam o que sinto- com o que penso- com o que vivo. É um jeito um pouco misturado onde nem sempre o resultado é bom. Eu bem que tento ser mais linear, mas são as curvas que me interessam ou ao menos os riscados meio ao acaso que me encantam. Portanto, peço um pouco de condescendência, pois novamente resolvi escrever uma carta.
Por aqui é madrugada. O inverno anunciou que hoje cedo vai chover gelado. Pode ser que neve. “Atenção, pois o chão pode ficar escorregadio”, escuto na rádio. Ainda estou acordada tentando rabiscar palavras em celebração pelos 10 anos da Política Nacional de Humanização (PNH). O convite já havia chegado a algumas semanas, mas estranhamente sempre que pensava em escrever algo, as palavras secavam. Foi preciso cronos bater à porta indicando que em dois dias seria o evento comemorativo para eu arrumar coragem e deixar-me pegar novamente pelo fluxo da amizade, da paixão, do compromisso com as políticas públicas de saúde que caracterizaram a PNH no Brasil.
O convite invitavelmente me transporta para um certo início. Digo um certo início, pois bem sabemos que por trás de todo o começo há infindáveis pontos de conexão com outros tantos pedaços de história. Não há linearidade na história, ao menos nesta história que acreditamos ser feita de fatos comuns, composta de práticas feitas por homens comuns. Sim, é justamente esta história – a da construção de um comum- que interessa contar e celebrar. Aqui já indico que ocupo circunstancialmente este lugar de contadora de história, pois, reafirmo, este eu que escreve é um dentre outros incontáveis eus que se dissolvem na construção do comum. É a história contada, recriada a cada momento que interessa. É a história-acontecimento, que irrompe na linearidade dos fatos, que expressa o pulsar da vida.
Assim, podemos dizer que uma camada de história se adensa nestes 10 anos. Seus pontos de aglutinação nascem do encontro de um tempo e um espaço populados de lutas pela democracia no Brasil, de lutas de muitas minorias que buscavam passagem para ganhar a pólis,  de lutas pela afirmação de um SUS mais equânime, universal e integral; pela construção de experiências no Brasil e no mundo geradoras de novas práticas em saúde. Como efeito de toda luta, tais pontos trazem as disputas, as relações de poder, as diferenças que produzem outras diferenças, mas trazem também a tendência apassivadora de tentar equalizá-las em prol de uma idealizada ‘unidade’.
Este é o cenário onde em 2003 um programa de humanização dos hospitais se vê desafiado a romper sua verticalidade, sua localização, sua identidade, seu alvo, seu especialismo para se criar enquanto política nacional de humanização.
Desde a partida, identificamos o que não queríamos. Melhor dizendo, não apenas não queríamos, mas não acreditávamos. Não havia essência de um bom humano a perseguir, sentido de humanização que a nosso ver mascarava as relações de poder, as relações de produção dos sujeitos, as relações de produção do processo de trabalho. Não havia tampouco um lugar para acontecer, ou grupo específico a beneficiar ou níveis de intervenção/implementação a privilegiar. O primeiro impasse anunciava que a palavra humanização carregava sentidos que invisibilizavam as mil lutas travadas cotidianamente pelos usuários e trabalhadores do SUS para garantir o acesso universal, equânime e integral almejado. Sem saber por onde ir, ouvimos. Ouvimos a necessidade de ser ouvido, de ser cuidado, de cuidar melhor. Ao invés de mudarmos a palavra decidimos tomá-la como ferramenta e colocá-la para funcionar como intercessora das práticas de cuidado, das práticas de gestão. Decidimos engordá-la, fazê-la crescer para todos os lados. Ali onde era uma palavra remetendo a um sentido idealizado, alinhavamos múltipos sentidos. Humanização era: atenção e gestão; transversalidade; formação; pactuação de princípios; diretrizes de implementação; dispositivos e, porque não, indicadores e avaliação.
Mas, queríamos mais. Não mais como um pograma, a política de humanização deveria ser transversal a todas as práticas de saúde, a todos os programas, a todos os níveis de intervenção, a todos os atores constituintes do processo saúde-doença. Transversalidade e inseparabiidade entre gestão e atenção tornaram-se princípios condutores da política que almejava sobretudo fortalecer seu caráter público. A Humanização queria-se uma política para todos e para qualquer um, uma política que garantisse mais seu caráter experencial do que se viabilizasse por prescrições e procedimentos. Logo dissemos: não queremos portaria que garanta a institucionalidade da política. Seu garante dar-se-ia pelas alianças, pelas tensas negociações de interesses, desejos, projetos, necessidades. Seu garante dar-se-ia num inevitável e permanente processo de construção. Não nos iludimos que esta escolha ético-política seria mais difícil. Topamos o risco.
O que veio a seguir foram escolhas estratégicas dos conceitos que norteariam a PNH. Conceitos eram, de fato, ferramentas, algo que nos servia para operar o complexo campo da saúde púbica e o não menos complexo SUS. Para afirmar o caráter público da política, discutíamos como poderíamos escapar dos burocráticos arranjos da máquina do Estado. Procurávamos criar comités co-gestores, instâncias participativas ampliadas, zonas de intersessão onde os diferentes atores de construção da saúde estavam presentes, redes virtuais, porém reais em sua capacidade de mobilização, em sua vocalidade de contestação e de aglutinação. A realização da política deveria se dirigir para seu entrosamento com outras políticas e programas de tal ordem que humanização seria prática pertencente a um plano comum das políticas e não uma específica política-programática. Este movimento de transversalização, entretanto, embora não visasse uma institucionalização deveria procurar construir uma institucionalidade, entendida como capacidade para operar através das instituições/práticas de saúde.
Ao lado deste desafio, um outro não menos importante e difícil se colocava. A PNH investia na inseparabilidade entre gestão e atenção.  Trabalhadores de saúde produzem saúde e a si mesmo como trabalhadores da saúde. Trabalhadores são gestores de seu trabalho, criam as regras, responsabilizam-se por elas, pesquisam seu trabalho e se inventam ao mesmo tempo. Usuários da saúde ‘usam o serviço de saúde’, mas ao mesmo tempo se co-responsabilizam com sua saúde. A integralidade da atenção não poderia se dar sem a integração dos serviços. Estes não se integrariam se não se constituissem em sistemas. Tais sistemas precisariam ser esgarçados em redes para escapar do mecanicismo que lhes rondam. Não há universalidade da atenção sem comprometimento da gestão. A gestão não pode se reduzir a arranjos do orçamento ou a procedimentos administrativos que sirvam apenas para regular a força de trabalho. Por outro lado, a equidade para ser garantida precisa incluir as diferenças.
Ah…eis aqui outro ponto que fez da PHN radicalizar o SUS: a política devia operar num paradoxal movimento de inclusão que não fosse cooptado pela maquinaria do Estado. Dissemos, então:  a construção de uma política pública, como queríamos a PNH, se dá neste fora da máquina, neste tênue e impreciso espaço-tempo em que ela do Estado quer a garantia da universalidade do direito à saúde, mas dele recusa o que na universalidade abafa o singular, o estranho, o que foge do equilíbrio.
Esta utopia ativa, construida inicialmente a poucas mãos e corações, rapidamente se expandiu. Apostamos numa política do contágio, nas rodas que mais do que um método, era uma atitude, um ethos político que nos mantinha vivos ou vívidos em nossas militâncias.
O ano de 2003 foi o da elaboração, proposição, pactuação interna e início da publicização quando da 12a. Conferência Nacional de Saúde. No âmbito do MS, crescemos em parcerias. As demais áreas passaram a incluir em suas políticas, critérios de humanização. Caminhamos com  a PNH em busca de um SUS que dá certo.
O ano de 2004 foi o da disseminação, divulgação, pactuação externa, formação e apoio institucional para implementação das diretrizes da PNH. Apresentamos a Política na Tripartite e no Conselho Nacional de Saúde. Foi também um ano de grande produção teórico-conceitual quando nos voltamos para a construção dos dispositivos de intervenção voltados para a concretude das experiências e para o compromisso com o aumento da capilaridade das ações.
Em 2005 alguns de nós decidimos partir do Ministério da Saúde. Não partimos da Humanização. Uma vez contagiado pela humanização, dela não mais se parte. Alguns nos perguntam, por que então partir de um locus onde a PNH tinha se construido e ganhava cada vez mais espaço? Soubemos que era tempo de partir quando a vida se constrangeu, quando as composições que potencializavam nossa capacidade de criar/de fazer enfraqueceram. Mas, como dissemos, uma política pública não termina quando alguns se deslocam de um lugar a outro. Outros companheiros vieram, muitos de nós continuamos a trabalhar pela humanizaçao em outros espaços.
Nos anos seguintes, muitas composições  foram criadas, muitas invenções, maravilhosas invenções foram implementadas. A crítica que sempre caracterizou a política manteve-se acirrada. Criação e crítica alinharam-se na humanização. Estes eram mesmo os sentidos mais radicais que sempre quisemos ver enganchados na palavra-ferramenta humanização.
Em 2007 deixei o país. Fui em busca da África na África. Trabalhei em Moçambique por 4 anos e meio. Conheci a ausência dolorosa de um sistema único de saúde. Vivi na carne a ausência do mais simples sentido de humanização. Experimentei um Estado dependente, uma sociedade civil na maior parte das vezes orquestrada autoritariamente por este Estado. O SUS me acompanhava como alimento nas horas difíceis, a PNH inspirava-me na utopia de um mundo mais justo. Com iso, aprendi um jeito de estar em comunidade, de me alegrar com água que podia ser carregada para o Centro de Sáude para mais uma vida que era parida. Conheci jovens e com eles trabalhei na conquista de uma posição mais autônoma e iniciando sua contraposição ao que do Estado vinha como regra a ser cumprida.
Em 2012 mudo de Moçambique para os Estados Unidos. A vertigem da viagem do sul à leste para o norte à oeste, da lingua que me era familiar para outra onde ‘estrangeiro’, colocou-me na busca novamente do que na saúde era direito. Agora na metrópole, acompanho a luta que nos anos 60-70 era travada no Brasil por uma cobertura universal. O sistema incerto e injusto das seguradoras de saúde fazem do país considerado um dos mais desenvolvidos do mundo estar às voltas de como garantir um mínimo de saúde.
Muitos perguntam-me qual a minha avaliação da PNH 10 anos depois. Titubeio na resposta. Muito aconteceu, muito se criou, muito se fez nestes anos. Como disse, estou fora do país a 6 anos e, embora tenha procurado acompanhar os movimentos da política, precisaria mergulhar muito mais no contexto, nas contradições e paradoxos que a constituem para falar algo. Ouso, porém, pegar um fio que me pareceu sempre ter sido o condutor/conector da PNH: seu compromisso em ser uma política pública transversal. Se este é ainda seu compromisso, há desafios que precisam ser enfrentados que deizo aqui como perguntas. Como avançar na sua insitucionalidade sem qeu isto implique numa forte institucionalização? Como radicalizar seu caráter transversal criando mais espaços dialógicos e público do que procurando manter-se nas estruturas da máquina do Estado? Como avançar num processo de expansão sustentável contando com as redes tecidas no setor saúde, mas também para além dele? Como fazer do apoio institucional cada vez mais um compromisso com a autonomia dos diferentes grupos e atores, sem que isto signifique uma passagem para os projetos narcisistas e meramente autorais?
Finalizo dizendo que esta carta é para todos aqueles que ousaram caminhar pelas linhas imprecisas da PNH, e mais ainda da humanização, àqueles que, como o poeta, sabem que viver não é preciso.
Enquanto eu escrevia, momentos inesquecíveis dos anos que tive a alegria e a honra de compartilhar quando estava à frente da Coordenação da PNH e mesmo depois, como consultora da região Rio, voltaram trazendo-me a intensidade de nossas trocas. Fico tentada a nomear alguns destes companheiros que de uma maneira incondicional embarcaram nesta construção. Mas, mesmo que a memória muito me ajudasse eu estaria sendo injusta com todos, todos aqueles que no Brasil também tomaram esta estrada. A todos vocês, onde estiverem, a todos vocês que continuam insistindo na ‘humanização da saúde’, meu muito obrigada. Obrigada por terem me dado a chance de ter uma das melhores experiências da minha vida no campo da saúde pública.

Como disse o Leminski, continuemos a “Achar a porta que esqueceram de fechar. O beco com saída. A porta sem chave. A vida”.
Regina Benevides