Escutar a crise.

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A escuta é o momento radical da instituição da autonomia. Ao ouvirmos o outro narrando sua trajetória na forma do percurso de seu padecimento, criamos o momento da ruptura com a projeção impotente de si mesmo.

Quando eu me sento diante de um cuidador e falo de minha dor, fico indefeso diante de minha singularidade e do significado do meu sofrimento diante de tudo o mais que sou. Ao contrário do que o senso comum nos indica, não é quando nos negamos a escutar que nos distanciamos da singularidade alheia. É quando escuto que o outro se instaura em sua potência autônoma e constitui seu espaço de alteridade.

A cena clássica da pessoa gritando por que o médico traumatologista não veio lhe atender pode se resolver com a chegada de uma força policial que o silencie. Podem ser só gritos. Nenhuma escuta. Pode não haver continência, apenas força. Então, em casos mais raros a crise se transforma em emergência e, em alguns segundos, a urgência se torna um fato que muda a vida. O gesto pode impregnar a memória e instaurar uma trágica configuração do olhar.

Por outro lado, essa mesma cena pode se equacionar de outra forma. Quando alguém consegue se dispor a ouvir o usuário. Ele fala que mora mal, veio de longe para a consulta, diz que a muleta o incomoda e que está perdendo o horário de retirar os medicamentos para tratar a infecção por HIV. É nesse processo que a respiração se normaliza, a fala desce a um tom mais moderado e o usuário agradece, aperta a mão de quem o escutou e vai embora. Retornando a incontornável realidade de ser ele mesmo, disposto a tentar de novo, quando o traumatologista voltar de sua licença para tratamento de saúde.

Foi porque cada um ocupou seu espaço e a potência do encontro se consumou, que a alteridade se tornou visível e à tragédia dada, uma nova não se somou…

Geralmente nos evadimos de ofertar escuta por medo de recebermos o impacto da dor alheia se somando a nossa. Isso é verdade apenas em parte.

Trabalhadores da saúde que cuidam de pacientes terminais podem ter menos sofrimento relacionado ao estresse laboral. Isso se dá justamente porque não podem negar a alteridade absoluta de seus usuários que enfrentam uma morte única e irreplicável.

Se sofremos, ao dar continência para a dor alheia, não é pela empatia oriunda de se colocar no lugar de quem sofre ou morre. Sofremos por que somos remetidos a nossa própria, única e inimitável singularidade. Por isso, quem já não teme a sua própria singularidade, pode suportar melhor a de seu semelhante.