Patrimônio da Humanidade e Bens de Civilização
Ao Erasmo e a todos desta querida rede de encontros
A chegada do homem a lua há 40 anos sintetiza muito bem as noções de patrimônio da humanidade e bens de civilização. Em mim estas noções evocam algo capaz de ser relevante por que precede e permanece além da agitação insignificante de um indivíduo e mesmo de toda uma geração.
Nos discursos oficiais de Kennedy e Nixon a menção ao esforço coletivo de uma nação que lutava por liderança tecnologia, no contexto geopolítico, muito específico da guerra fria, hoje me parece insuficiente para dar conta das forças que se colocaram em marcha durante o esforço para a chegada a lua. Uma conquista sem conquistado.
A lua, diferentemente do novo mundo batizado de América, não pertencia a ninguém. Os recursos que formam mobilizados e desenvolvidos foram emprestados pelos EUA de um legado de toda a humanidade que remonta aos anônimos que dominaram o fogo e perceberam a utilidade da roda. A bandeira que permanece inerte em solo lunar é americana. A placa, deixada próxima a bandeira, registra que os americanos vieram a lua em missão de paz e o fizeram em nome de toda a humanidade.
Bem, ao lutarmos por nossos interesses mesquinhos fazemos algo mais. Só não sabemos a que servirá este “mais” que fazemos. Nossas existências, comparadas ao tempo imemorável em que o universo existe é misteriosa, se tiver algum propósito. E é mísera se não se tratar de mais do que um acidente.
O universo, aos nossos olhos, ou é sem sentido, ou tem um sentido que não podemos conceber, ou seja, para cada um e para todos nós, o jogo dos sentidos do ser e do estar no mundo está sendo jogado. Fazemos a história da humanidade em equipe. Logo nós, humanos, que somos apenas inquilinos muito recentes neste planeta e podemos ser despejados por mau comportamento nos sentimos muito importantes enquanto indivíduos.
A lua nos tem desafiado com seu misterioso pairar na escuridão noturna desde o tempo em que não encontrávamos riqueza na linguagem para expressar nosso assombro diante do mundo. Estivemos lá e logo iremos a Marte. Procuramos entender por que fazemos coisas que respondem a uma curiosidade que temos mais intensamente na infância e ao fazê-lo vamos criando uma necessidade e uma satisfação como o forno de micro-ondas, a telefonia celular e os fones de ouvido.
Quando estava para ir a lua, um dos astronautas havia perdido sua filha. Durante um dos incontáveis testes psicológicos ele teve de responder como se sentia diante da morte. Depois de perguntar ao psicólogo se havia uma resposta certa ou errada para a questão ele se calou. Bastou um olhar, como que a dizer: “significa muito, mas não o suficiente para me impedir de ir a lua em nome de toda a humanidade”. Somos assim. Sofremos as conseqüências da existência, mas não a ponto de desistir dela, na maioria dos casos.
E tudo isso, essa insistência, vai compondo o cardápio de Bens de Civilização que comportam desde nosso polegar opositor até a imprensa de Gutenberg e a Internet de milhares, milhões de anônimos. Porém, uma realização humana como a chegada à lua pode ser fruto do trabalho dos profissionais da NASA, ou da industria aeroespacial, mas será um feito do qual nos orgulhamos como se parte de nós também tenha estado lá.
É desta mesma forma que temos um lugar único e impotente, insuficiente, por si só, e ao mesmo tempo imprescindível no trabalho em saúde. Um lugar onde cada um e todos nós tecemos um sentido e um existir que são indissociáveis. Se por um lado, somos insignificantes em nossa existência individual, o fato é que existimos. Ao menos eu que escrevo, no meu agora e você que me lê no seu, vivenciamos, entre nós, uma relação de encontro intangível, mas que permite nos sentirmos reais.
Dessa forma, todo o mundo que vemos e ao qual atribuímos algum sentido depende de nós. Mais do que acontecer em algum lugar no espaço tempo, o mundo é/ está entre nós. Em nossas existências objetivas está nossa existência sentida e vivida.
Objetivamente, subjetivamos o mundo a cada batimento cardíaco. Só pensamos porque a arquitetura neuronal desenvolveu-se ao longo de nossas vidas, mas também porque nossos milhões de parasitas intestinais se mantém em equilíbrio com a manutenção de nossas funções digestivas, e assim por diante com todo nosso corpo que abriga o espírito que é mais do que humano.
Em nossa singular trajetória no mundo revivem todos os mortos, reaparecem todas as existências, sem as quais não seriamos. Não temos um mundo a inventar do nada. Podemos seguir em frente, tendo em mente que cada passo que damos se apóia e se insere em uma história que dá sentido, ainda que incomensurável, a nossa pequena e extraordinária insignificância. Seja construindo um caráter e uma identidade coletiva, seja construindo um modo fraterno de cuidar e afirmar a vida.