SUS, um direito por defender

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Compartilho uma entrevista primorosa da Sônia Fleury, publicada no dia 20.12.2013, através do Centro Brasileiro de Estudo de Saúde (CEBES)

 

soniarba-320x212_foto.jpgSônia Fleury, Professora da FGV diz que alianças conservadoras em busca de manutenção dos privilégios seguem sendo entrave à universalização da saúde no Brasil e que política econômica atrapalha política social

Histórica militante dos direitos sociais no Brasil e doutora em ciências políticas, Sonia Fleury participou ativamente da luta pela democratização, como liderança em algumas das mais atuantes instituições do setor saúde como o Centro Brasileiro de Estudo de Saúde (Cebes) e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), onde foi formulado e impulsionado o projeto da Reforma Sanitária Brasileira que resultou na criação do Sistema Único de Saúde (SUS).

A experiência associada de militância e especialização na área de seguridade qualificou Sonia para exercer o papel de consultora da Assembleia Nacional Constituinte, para a elaboração do capítulo sobre a Seguridade Social da Constituição de 1988. Hoje, coordena o Programa de Estudos sobre a Esfera Pública na Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape) da Fundação Getúlio Vargas, onde é professora titular.

Em entrevista exclusiva ao blog Padrão Brasil, Sonia trata do significado das manifestações de 2013 para a consagração dos direitos sociais, da necessidade de integrar as lutas de diversos campos da área social e explica por que todos os governos desde a redemocratização resistiram em colocar o SUS como política pública prioritária. Ela afirma que os direitos sociais de cidadania só serão protagonistas na agenda nacional quando a população se mobilizar e, para isso, cobra mudanças na legislação para facilitar e efetivar a participação política dos cidadãos brasileiros na tomada de decisões e, assim, permitir a reivindicação dos direitos assegurados pela Constituição Federal.

Padrão Brasil – Qual o significado das manifestações de 2013 para a saúde pública brasileira e os direitos sociais de modo geral?

Sonia Fleury: Foi importante porque mostrou que a população tinha consciência de que tem direitos, em primeiro lugar, e que esses direitos estavam sendo denegados. Que eles não estão sendo respeitados pelos poderes que deviam estar assegurando-os. As reivindicações foram em torno de transporte, de saúde, educação. Um conjunto de  direitos sociais que tem a ver com a qualidade de vida da população, que está sendo cotidianamente desrespeitado em situações de grande violência institucional.

Padrão Brasil – Qual a definição de violência institucional?

Sonia Fleury – Um hospital caindo aos pedaços ou o transporte lotado e sem condições de atender às pessoas não é casualidade. São responsabilidades públicas, por isso, podemos chamar de violência institucional quando isso acontece.
Padrão Brasil – Desde 1988 nenhum governo alçou o SUS a posição de política pública prioritária. E ao longo desses 25 anos o que se viu foi um afastamento de setores sociais importantes que defendiam a saúde universal, por exemplo as centrais sindicais e o funcionalismo público. Isso fortaleceu a ideia de SUS pobre para pobre. Porque isso é ruim? Isso fragiliza a ideia de sociedade solidária que estava presente na CF 88?

Sonia Fleury – É preciso entender que o Brasil é um país de enorme desigualdades em que a políticas sociais foram originariamente também estratificadas. De um lado quem estava incluído não tinha os mesmo direitos de outros, cada um dentro do seu quadrado, enquanto a maioria da população permanecia excluída. Essa é a memória que nós construímos. O SUS foi um rompimento com isso, ao universalizar e dar os mesmos direitos a todos, independente da capacidade contributiva de cada um. Mas não é fácil mudar a cultura elitista que existe na população, inclusive dentro da classe trabalhadora.

Padrão Brasil – Como isso se manifesta na prática?
Sonia Fleury – Todos querem se diferenciar, ninguém quer ser igual no Brasil. Ser igual é estar na pobreza, em vez de prevalecer a noção democrática na qual ser igual é ser cidadão. Nós temos um problema de cultura política e de alianças conservadoras que impedem que mais recursos sejam destinados a essas políticas igualitárias. Na medida em que você criou um sistema para todos, mas ao mesmo tempo não deu os recursos suficientes para isso, cada um desses grupos que tem capacidade de pressão buscou  ter seu benefício como privilégio, isto é,  diferentemente da política para todos.

Desde sempre as centrais sindicais mantêm uma posição dúbia. Elas apoiam o SUS, como fizeram recentemente no Movimento Saúde+10, mas ao mesmo tempo defendem a manutenção de planos de saúde para seus trabalhadores. Isso é verdade também para os funcionários públicos e profissionais de saúde. É uma dubiedade própria da sociedade brasileira.

Não dá para exigir que as pessoas todas passem a ir ao SUS quando ele está ruim. Tem que melhorar o SUS, aí as pessoas voltarão. E não apenas para tratar um câncer ou fazer um transplante, que todos voltam hoje em dia, já que são enfermidades custosas.

Padrão Brasil – Qual a responsabilidade dos governos nesse processo de afastamento da população do SUS?

Sonia Fleury – Os governos não se comprometeram. Não puseram o esforço necessário para saúde e educação, que são os dois sistemas universais, e houve uma queda de qualidade desses dois sistemas. Aí  as pessoas tentaram fugir para um serviço privado, mas que é patrocinado e subsidiado pelo dinheiro público, seja através de isenções no imposto de renda seja através de subsídios diretos.

E o que está acontecendo é que os planos de saúde estão cada vez piores. O acesso [às ações e aos serviços de saúde] das pessoas tem piorado enormemente. Consultas, exames, tudo cada vez mais restrito.

Sobre as escolas privadas, o Pisa mostrou que os 25% de maior nível socioeconômico no Brasil tem piores resultados que os 25% mais pobres do resto do mundo. Então nós estamos tendo uma queda de qualidade no setor privado. Isso porque quem dá o padrão é o setor público. Essa é a grande ilusão da classe média, ao imaginar que vai sair do setor público e ter seu plano privado e tudo estará bem. Isso não dá certo, porque se você não tiver para onde correr seu plano vai cair de nível. A sua escola vai cobrar caro e vai cair de nível. Nós temos que reconquistar a classe média não obrigando-a  a usar o SUS, mas mostrando que sem um sistema público bom o privado vai para o mesmo buraco.

Padrão Brasil –  Porque governo após governo, a constituição continua ser descumprida no Brasil no que diz respeito aos direitos universais de cidadania?

Sonia Fleury – Nós temos uma política econômica que tem comprometido as políticas sociais. As políticas universais, como o SUS e a escola pública dependem de um Estado forte, com capacidade de regular o mercado e ao mesmo tempo tributar. Requer um sistema tributário altamente progressivo para que o governo possa distribuir fazendo políticas de qualidade. Nós não temos essas condições aqui. Houve um debilitamento do Estado, das carreiras públicas, dos sistemas públicos de prestação de serviços que vêem se deteriorando nas últimas décadas. Nós também não temos uma política de crescimento econômico que seja casada com essa política social redistributiva. Nós temos uma carga tributária que é elevada e que é extremamente perversa: quanto mais pobre, mais se paga.
E sobram poucos recursos para o social, ainda mais porque o governo tem usado políticas de desonerações que afetam a seguridade social e que afetam os governos municipais, que são responsáveis por saúde e educação. Então, há uma dissociação dos planos do governo, em que a área econômica está extremamente comprometida com a estabilização da moeda, e tudo isso tem deixado muito poucos recursos para a área social.

Padrão Brasil –  Mas nos momentos eleitorais a ênfase no social é muito forte …

Sonia Fleury – A opção dos governos tem sido por políticas sociais de grande impacto, por exemplo, a transferência de renda, mas são políticas que comprometem muito pouco dos recursos do PIB,enquanto um grande volume de recursos continua sendo usado para pagamento de serviços da dívida pública e compromissos relacionados ao capital financeiro, porque a taxa de juros, embora tenha abaixado, ainda é muito alta. O que vivemos é um aprisionamento dos governos em relação ao mercado financeiro. Isso tem acontecido no mundo inteiro, mas aqui com muito mais virulência e não existe capacidade estatal para enfrentar isso. Mas é preciso que a população cobre, porque a correlação de forças tem sido muito desfavorável para o lado dos direitos sociais.

Padrão Brasil –  Essa é uma prática neoliberal, que se mantém desde a década de 1990?

Sonia Fleury – Na visão neoliberal preconizava-se que era preciso reduzir o Estado e valorizar o mercado. Essa visão entrou por dentro do Estado de uma forma muito forte. Nós temos ainda quem ache que a salvação do SUS é PPP, OS, OSCIP,  enquanto na verdade nós sabemos que não é isso que vai melhorar. O que precisa é de uma política pública realmente pública, de grande qualidade e que tivesse a capacidade de mudar tanto a educação quanto a saúde no país. Apesar de o neoliberalismo ter se mostrado fracassado nas suas políticas econômicas e sociais, a ideologia se entranhou muito fortemente e impediu que fosse criada uma alternativa nacional, desenvolvimentista que possa dar conta de criar alternativas reais para um outro projeto político e ideológico.

Padrão Brasil – O auge do neoliberalismo na década de 1990 incutiu fortemente a ideia do Estado menor e apresentou a saída para os problemas sociais pela via de mercado, seja através da privatização de serviços ou pela simultânea desconstrução dos serviços públicos. Isso ainda hoje persiste. É possível construir um país, com uma Constituição como a que temos, com as mentes de boa parte (47%) da população defendendo menos Estado?

Sonia Fleury – Prefiro olhar pelo outro lado. Não foi a maioria, o que mostra que as pessoas querem saúde e educação, com ação do Estado. É importante fortalecer na população a noção de que ela tem direitos e o Estado vai ter que se dar conta de que para garantir os direitos da população não pode permitir que o capital se desenvolva livremente e absorva recursos públicos nessa disputa que hoje ocorre pelos fundos públicos. É possível e viável, mas depende realmente da força da exigência do direito. E o Estado ao ter que cumprir o direito vai se dar conta que o cumprimento dos direitos é inviável se forem mantidas taxas de lucratividade absurdas fora do setor saúde também em medicamentos, equipamentos e nos próprios serviços. É inviável e, por isso, vai ter que viabilizar os direitos cidadãs através de políticas públicas e serviços públicos, em um sistema mais racionalizado e mais bem organizado.

Padrão Brasil – Nessa conjuntura política e econômica desfavorável aos direitos sociais, faz sentido ou é possível ainda lutar pela plena implantação do que a constituição oferece aos cidadãos brasileiros?

Sonia Fleury – É claro que faz! Senão você desiste da democracia. É claro que as condições não são as mesmas da criação da social democracia, mas são as que nós temos que enfrentar. E estando num regime democrático nós vamos enfrentar isso tanto pelo voto quanto fazendo pressão diretamente, através dos diferentes movimentos sociais que precisam colocar fortemente exigências de direitos. É só isso que pode mudar. A pressão do mercado financeiro é cotidiana. A pressão do empresariado é constante para atender os seus interesses, enquanto a população tem interesses muito dispersos. A população não está organizada como os lobbies dos grandes grupos corporativos para fazer esse tipo de pressão.
Medidas como uma reforma política, que diminua o papel do financiamento privado das campanhas e outras que simultaneamente  fortaleçam os instrumentos de participação da sociedade são a saída para fazer o jogo político pender para o lado da população.E isso é um processo histórico de correlação de forças que vai continuar existindo na permanente luta por direitos. O mais importante é que nós temos uma Constituição onde estão expressos os direitos, não houve retorno nem desmantelamento do sistema de proteção social, nem legal nem institucional. Há uma consciência cada vez maior na população de que ela tem direitos e que, portanto, ela pode reivindicá-los e exigi-los. É preciso transformar isso em voto, em poder organizado para mudar um pouco a realidade.

Padrão Brasil – Você citou a reforma política. Há outras reformas estruturais que são necessárias no país. É possível fazermos essas mudanças diante da conjuntura política e econômica atual, sem haver rupturas?

Sonia Fleury – Nós sofremos muito com essa forma de presidencialismo, chamado de presidencialismo de coalizão, em que o presidente fica dependente de construir maiorias com grupo extremamente conservadores, que estão no congresso. Mas apostar todas as fichas nas reformas institucionais eu acho equivocado. Pensar que fazendo a reforma política você vai resolver todas essas contradições eu acho que não será possível. Porque assim colocaríamos um peso desmesurado na parte institucional em vez de ser na participação política. A sociedade conseguiu fazer a maior mudança institucional desse país que foi a “Lei da Ficha Limpa”. Existem outras possibilidades, inclusive de reforma política, vindas pela própria sociedade na capacidade de usar esse poder legislativo que a Constituição colocou. Mas é preciso reformular a regulamentação da iniciativa popular legislativa, (Artigo 14) para facilitar a criação de leis de iniciativa popular e para que esses projetos tenham prioridade na tramitação interna do Congresso. Mas as duas coisas precisam ser somadas. A sociedade não pode desistir.

Padrão Brasil – Então a defesa dos direitos e de maior participação política da população passa pelo que tem se chamado na academia e nos movimentos sociais de “radicalização da democracia”? O que é esse conceito e como se efetiva?

Sonia Fleury – Sim, passa pela radicalização da democracia. A  democracia tem sido tomada como se fosse a criação de grandes consensos, grandes negociações para se chegar a um ponto médio, que não afete interesses nem de um lado nem de outro. Como se o conflito fosse algo ruim para a política. Essa é uma visão equivocada de democracia. A política nasce exatamente da construção de sujeitos que têm um ponto de vista diferente um do outro.

É preciso radicalizar nesse sentido de construir identidade políticas. O fato de existir um movimento operário nos anos 1970 que radicalizou as suas demandas salariais e lutou pela democracia, como foi o movimento do ABC, permitiu a construção da democracia junto com outros movimentos da sociedade, como o movimento sanitarista, que se construíram como sujeitos se diferenciando da política existente. Dizendo, não é essa política que eu quero para a saúde. Então, a política é conflito. É claro que na democracia os conflitos não vão levar à barbárie, podem ser mediados, discutidos para se chegar a entendimentos ou não. Mas tomar como princípio a democracia como consenso é caminhar para um projeto de centro direita.

Padrão Brasil – Então o que acontece no Brasil hoje, no Congresso, tem fortalecido o conservadorismo. Isso é um risco para os direitos sociais?

Sonia Fleury – É como se isso fosse o ideal de democracia: temos que chegar a grandes acordos, que vão atender o capital financeiro, os empresários, os trabalhadores e todo mundo. Por que nós temos que chegar a esses acordos? Desta forma perdem-se as identidades. Por fim, quem perde é a política, que é o diálogo mantido a partir de sujeitos que tem posições divergentes. Por isso, o conflito não deve ser tratado como algo ruim para a democracia, mas sim deve ser entendido como o cerne da democracia. Essa ideia de buscar sempre grandes consensos, coalizões amplas e majoritárias é muito boa para os grupos conservadores, mas não é boa para a sociedade nem para as mudanças que queremos fazer.

A radicalização da democracia é a de uma construção de identidades políticas e elaboração clara dos conflitos e de como sair deles, por meio de projetos estratégicos e táticas diferenciadas. E não de afastar o conflito, como se ele fosse antidemocrático. Antidemocrática é a adoção de um consenso a priori, porque ele desfaz as identidades políticas e favorece o conservadorismo.

Padrão Brasil – Uma alternativa é pensar e lutar por direitos sociais de modo integrada, não setorial …

Sonia Fleury – A construção da própria democracia partiu de movimentos sociais setoriais e corporativos, como esses que falei antes, mas que tiveram uma visão política que transcendia seus interesses específicos, porque senão não se constrói coisa alguma. Nosso desenho institucional das políticas públicas sendo setorial terminou impondo essa mesma setorialização à participação política da sociedade, como acontece em conselhos também setoriais. Por isso, houve esse retrocesso de se pensar área por área e não formular um projeto maior. Cada vez mais se percebe que estar isolado diminui a força da sociedade, conseqüência de pensar setorialmente e não através de direitos coletivos que tem a ver com a vida da população. Mais recentemente, esse movimento cresceu, tentando superar a setorialidade, porque hoje o pensar setorial é um limite, não é mais um avanço. É preciso pensar e evoluir para integrar a participação da sociedade nos conselhos e buscar formas de institucionalizar as participações transversais e coordenadas de  forma mais integrada.

Padrão Brasil – Onde estão hoje os principais inimigos da concretização dos direitos universais no Brasil?

Sonia Fleury – A cultura elitista, pela qual todos querem se diferenciar ao invés de se igualar é extremamente perversa. Ela não ajuda a construir a democrata, atua contra a noção de cidadania. Precisamos trabalhar essa cultura dentro de nós mesmos e não apenas jogar nos outros a culpa pelos problemas da sociedade. Nós partilhamos, de diferentes formas, uma cultura de extremo elitismo em que as pessoas querem se diferenciar. Precisamos construir um projeto igualitário e acabar com essa cultura elitista.

Além disso,  as instituições participativas tem perdido importância [as conferências e os conselhos], por isso, é preciso rever o modelo de participação atual, no qual a população é mobilizada e até ouvida, mas as decisões são tomadas em grupos restritos, sem levar em conta suas demandas e prioridades.  É preciso aumentar o controle da sociedade sobre o processo decisório do governo para diminuir a influência dos atores empresariais, que tem enorme influência.

E como grande inimigo nós temos a financeirização da política, de tal forma que todos os Estados nacionais estão subordinados ao capital financeiro o que restringe seu compromisso com os direitos sociais.