O nascimento da subjetividade
Como outros animais, o homem é capaz de formar matilhas, seguir um líder, o macho Alpha, agir de forma diferenciada conforme o gênero, entre outras habilidades inatas para saciar sua fome e seu desejo sexual. Acima de tudo, o sapiens nasce como um ser instintivo, inclinado a exercer todas as potências de que é capaz.
Entretanto, com o crescente acesso a proteínas, seu cérebro foi tornando-se maior. Sua capacidade de agir em comunidade aumentou, ao passo que sua fragilidade específica, ao nascer, reforçou a necessidade e a dependência de inter-relações com seus semelhantes.
Para operar melhor estratégias de ação pragmáticas e utilitárias, validadas pela experiência e, limitadas pelo acerto e fracasso, tornou-se necessário lembrar e nomear as lembranças. A emergência da linguagem foi um passo único no que chamamos de nossa história. Dar um nome aos objetos que nos rodeiam tornou-nos o centro imaginado de um mundo caótico e infinitamente diversificado. E, mais importante ainda, exigiu que reconhecêssemos a nós mesmos por um nome.
A consciência das coisas, que partilhamos com os demais animais, expandiu-se para uma consciência de si mesmo, peculiaridade aparentemente humana. Mas o Eu que designa a nós mesmos é diferente da singular identidade animal. Nosso Eu é um conceito, uma ideia intangível que adere ao nosso corpo, mas é mais do que ele mesmo. É a estabilização de um conjunto de experiências, diversificadas e únicas que narramos constantemente pelo rememorar. Essa imagem, projetada na tela íntima de nosso intelecto, torna-se a identidade subjetiva que passa a ser o Eu que sabe quem eu sou.
Sou o que penso e lembro sobre eu mesmo. Organizo o caos de instinto, imaginado como desejo ou vontade, que costuro, articulo no tempo e no espaço, para atribuir um sentido, uma unidade racionalmente ou racionalizadamente coerente que chamo de Eu. O sapiens, então, passa a saber que sabe: Ele agora é homo sapiens sapiens.
Nesse ponto nos tornamos mortais. O homem sapiens genérico que nascia e perecia individualmente em cada indivíduo singular, mas vivia indeterminadamente na legião de homens indistintos, dá lugar a um sujeito único que existe e desaparece, deixando um rastro de mito, religião e cultura.
Não mais o homem, como o lobo genérico que vive em cada lobo individual, mas a humanidade fundada na consciência incontornável da morte de cada humano. A nossa história é a narrativa da luta titânica para superar essa contingência esmagadora.
Por Pablo Dias Fortes
Belíssimo texto, Marco!
Ouso aqui, para inauditas consequências historiográficas, um pequeno "intercâmbio editorial" na última afirmativa do texto: "nossa história é a contingência da luta titânica para superar essa narrativa esmagadora"
Abração, meu querido!
Pablo