Desumanização da prática médica: um obstáculo à compreensão da dor

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Desumanização da prática médica: um obstáculo à
compreensão da dor

OPINIÃO – Jornal da Cidade – Aracajú – SE

Texto: Yolanda Dantas de Oliveira ( Professora doutora em Educação / Universidade Federal de Sergipe)

Há poucos dias, uma publicação do presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica, Antônio Carlos Lopes, no JORNAL DA CIDADE, enfatizou a importância de uma relação mais humana entre médico e paciente, de modo que este último possa ser tratado não somente como um "ente físico", cujo foco é apenas a doença; ele ressalta a importância do paciente "morrer de mãos dadas com seu médico". Foi, ainda, destacada na publicação referida a  necessidade de uma política de governo para um atendimento humanizado, especialmente aos que são vitimados por doenças graves, fazendo menção rápida ao papel da formação profissional para a internalização de tais princípios.
Entendendo a pertinência de tais considerações e provocada por elas, mas, sobretudo, movida por um sentimento de profunda dor pela perda da minha mãe que, em um serviço de urgência médica, desta cidade,  foi tratada de forma fria, grosseira e desrespeitosa,
em relação aos sintomas e ao modo como expressava o mal que lhe afligia, resolvi romper o silêncio que, por certo tempo, o luto me impôs, ainda que, contendo a minha indignação, cujas razões me reservo o direito de não explicitá-las.
Não resta dúvida que os avanços realizados pela ciência vêm ampliando as possibilidades de atuação da medicina, quanto ao tratamento, controle e cura de muitas doenças e, com isso, de melhoria da qualidade de vida, embora nem todos possam usufruir dos benefícios que, hoje, essa ciência oferece. Além de ousados
métodos de investigação e de interferência mais efetiva em um grande número de doenças, a atuação médica tem sido facilitada pelo uso da tecnologia.

Os avanços nessa área têm ampliado, cada vez mais, as possibilidades de sucesso na luta contra determinados males, que até certo tempo atrás, a única certeza para aqueles que os contraíam, era a de perecer, além do poder de reversibilidade ou atenuação de determinadas mutilações ou deformidades congênitas.
Mas, ao mesmo tempo, nem tudo, no que se refere ao progresso da medicina, pode ser contabilizado como ganho.
A substituição da medicina mágica ou de inspiração Divina, realizada pelos nossos antepassados, pela medicina clínica teve como contrapartida o erguimento de uma barreira entre o médico e o paciente que, não raramente, se pode chamar de indiferença,
insensibilidade ou desumanização da prática médica; uma barreira que constitui sério obstáculo à compreensão da dor e do sofrimento do paciente, tal como ele os sente e expressa.
Há três meses, a minha mãe, com 81 anos, safenada há 20, foi constrangida a não gemer em uma urgência médica. A avaliação do médico que a atendeu foi a de que os sinais que poderiam indicar gravidade do seu estado de saúde, conforme o protocolo estabelecido pela ciência médica, pulsação e batimentos cardíacos,
estavam normais; o eletrocardiograma inicial, segundo o tal médico, indicava uma alteração cardíaca que não era significativa, outros procedimentos, portanto, além da aplicação de uma novalgina injetável, não se justificavam, foi o que indicou a reação do referido médico aos pedidos da família para que interviesse, embora, em seguida tenha prescrito uma injeção de morfina. Mesmo a
despeito dos reclamos da paciente, que indicavam a intensificação da dor no peito e nas costas, segundo ele, aqueles gemidos como expressão de uma suposta dor não tinham razão de ser, além do que, naquela sala "todos estavam tão doentes quanto ela".
Duas horas depois que a paciente deu entrada no hospital o seu estado se agravou muito, o seu médico particular foi invocado a interferir, mesmo de longe, aí então, fomos informados que seria feito um cateterismo de emergência e uma provável angioplastia, mas restavam somente 40% de chance de que ela sobrevivesse, em razão, também, de um suposto edema pulmonar; aquela altura ela já expelia sangue. A minha mãe sobreviveu ao exame, mas não
resistiu às complicações que dali em diante surgiram; menos de 24 horas depois ela veio a óbito.
Sou leiga nessa área, não sei se o final desse doloroso episódio seria diferente do que foi, mas penso que, certamente, o sofrimento da paciente teria sido atenuado se o tal médico tivesse tido a sensibilidade de ler a sua dor. Teriam sido evitadas as fortes dores, que os seus apelos por socorro expressavam, e o abandono que seu olhar indicava sentir, não obstante o esforço da família, especialmente dela, para ter um plano de saúde com a vã ilusão de um atendimento com presteza, eficiência e dignidade. Em geral, o receio de todos é o de ter de ficar à mercê do sistema público de saúde, onde o abandono dos cidadãos à própria sorte parece já ser dado como certo, e o pior, parece ser encarado como coisa normal.
A perda da minha mãe foi e continua sendo um fato de extrema dor, agravada, primeiro, pela constatação da insensibilidade e incapacidade do médico plantonista para ler os sinais do sofrimento dela e de entender o modo como o expressava; segundo, pela
atitude desrespeitosa em relação não só à pessoa doente, mas ao idoso, ao cidadão, que se encontrava sob os seus cuidados, em situação de extrema vulnerabilidade, inclusive dos seus familiares; terceiro, pelo sentimento de impotência em face da prepotência
de um profissional que se posta ante os pacientes como "todo poderoso", supondo, de antemão, a completa ignorância de todos e lidando com a ciência que exercita como se esta, por si só, detivesse a única resposta para as aflições do homem.
Fico a pensar sobre a atuação de profissionais de saúde dessa estirpe em hospitais públicos onde a demanda por atendimento parece ser maior do que em hospitais privados e, onde, via de regra, os pacientes são pessoas simples, humildes, não letradas, que se intimidam em dirigir-se a qualquer funcionário, de modo geral e, sobretudo, aos chamados doutores, embora nem todos o sejam, mesmo sendo médicos.
Não são raros os casos divulgados pela imprensa de falta de respeito aos cidadãos, não somente no que se refere à não garantia ao direito de acesso aos serviços de saúde, mas, especialmente, à qualidade deficitária de tais serviços, o que se relaciona também à atuação médica. São constantes os registros de casos de imperícia e negligência médica – o que não descarto no caso da minha mãe – cujas consequências nefastas são acentuadas pela ausência de uma atuação mais humana para com o sofrimento do outro, aliada à disposição, habilidade e preparo para entender os sinais que indicam esse sofrimento. Ressalte-se, por fim, que uma atuação médica, marcada por tais características, fere e humilha, sobretudo, aos que já são pessoal, social e historicamente humilhados, como ocorre com grande parte daqueles que dependem, unicamente, do sistema público de saúde.