A insustentável leveza do ser mulher na TV brasileira: um problema de saúde pública feminina

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Desde 1999, quando iniciei meu primeiro estágio na área de Direito, sempre achei mais confortável trabalhar vestindo calças. Num certo dia, me incumbiram de conversar com um Juiz e, para tanto, fui orientada a mudar de roupa, pois na época mulheres advogadas não eram recebidas com outra vestimenta que não fosse saia ou vestido.

Atualmente, as mulheres advogadas são recebidas vestindo calças ou saias, ou vestidos, contanto que em traje social, mas ainda assim tenho colegas que encorajam suas funcionárias a usar seus argumentos jurídicos (decotes e fendas) de forma exposta o suficiente para conseguir uma decisão favorável aos clientes. Há ainda escritórios de advocacia que determinam a cor e o tamanho do cabelo da advogada, e até mesmo o tipo de sapato que devem calçar (há número mínimo em centímetros do salto a ser usado).

Para homens advogados, o traje social e a competência técnica costumam bastar.

Na semana passada, pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA revelou que 58% dos brasileiros acreditam que "se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros”. Nesse mesmo dia assisti a um episódio da série Anno 1790, em que o tio de uma garota estuprada por três homens enquanto caminhava na floresta se queixa da menina ter ido fazer o passeio sozinha na floresta.

Fiquei imaginando se as pessoas (homens e mulheres) que responderam a esta pesquisa seriam os mesmos colegas mencionados acima, que condenam a jovem Geisy Arruda por ter usado um vestido curto para frequentar a faculdade, mas que incentivam suas funcionárias a exibir parte de seu corpo para atrair uma decisão judicial favorável.

A violência contra a mulher não se restringe aos casos de agressões físicas, mas se reproduz nessas atitudes cotidianas de nossa sociedade, que esvaziam a mulher enquanto ser humano dotado de direitos e escolhas pessoais, e outros tipos de agressões morais nem sempre tão sutis, que de forma lenta e (de)gradativa vão minando a dignidade daquelas que são submetidas a essas condições de trabalho, de lazer, de convívio social, até o momento em que se torna natural.

Tão natural quanto o programa matinal de TV de Ana Maria Braga do dia 28 de março de 2014 que, a partir de uma conversa com um médico ginecologista sobre HPV, objeto da atual campanha de saúde pública feminina do Ministério da Saúde, passou para a inusitada cirurgia a laser para embelezamento (estreitamento) da vagina, procedimento que seria indicado principalmente para mulheres que tiveram seus filhos através de parto normal.

Segundo dados do Unicef, o Brasil tem a maior taxa de cesariana do mundo: de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o ideal deve ficar em torno de 15%, já que a cirurgia só é indicada em casos emergenciais e põe em risco a gestante e o bebê, mas 38,3% dos nascimentos no Brasil são feitos por cesarianas.

Portanto, esse tipo de abordagem do programa Mais Você (que ironia!), além de reforçar o machismo com a ideia de que mulheres "ampliadas" em seus contornos físicos, sexuais e sociais seriam inadequadas, de aprofundar preconceitos em relação às formas físicas femininas, de promover a venda de serviços médicos privados associados diretamente à noção de inadequação genital, ainda desestimula a realização do parto natural, mas ninguém associa o fato à violência contra a mulher. É tudo muito natural, inclusive os mais diversos tipos de sabonetes destinados especialmente ao cuidado e à desodorização das partes íntimas femininas. Menos o parto normal.

Assim, deixo aqui o meu repúdio ao programa da Ana Maria Braga do dia 28.03.2014, e proponho que todas nós mulheres nos manifestemos a respeito para exigir uma retratação por parte da apresentadora, para que esclareça que a cesariana representa graves riscos de mortalidade para mãe e bebê e que a parturiente que escolhe dar à luz por cesariana tem risco de vida seis vezes maior em relação àquela que opta pelo parto normal, e que a cesárea aumenta as chances de a mãe contrair uma infecção ou ter uma hemorragia e quadruplica os riscos de o bebê ir para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

Deveria também esclarecer que, conforme alerta a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, é preciso muito cuidado para mexer em locais com tantas terminações nervosas. As cirurgias íntimas são vendidas como soluções para dificuldades sexuais, mas podem piorar a situação se o médico mexer onde não era para mexer.

Mas meu repúdio também se dirige contra os meus colegas dos escritórios de advocacia e demais ambientes de trabalho, de lazer, e de qualquer tipo de convívio social, que estimulam a exploração da figura feminina para obter vantagens. E ainda contra as empresas e profissionais que propagam a ideia da vagina como uma parte suja e inadequada do corpo feminino para vender seus produtos e serviços.

Essa é a forma como devemos nos comportar contra a violência que sofremos diuturnamente: defendendo nossa liberdade de escolha, e não aceitando padrões comportamentais, de "beleza", de vestimenta ou de qualquer outro tipo, que comprometem nossa saúde e nossa dignidade humana.
 

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Um dos painéis que compõem o "Grande Mural da Vagina", do artista plástico inglês Jamie McCartney
 

Nota: agradeço aos amigos Karen Athié, que postou comentário no facebook sobre o programa, e André Benedito, que me enviou link da obra de Jamie McCartney.