O espelho em que me reflito: compartilhando saberes com meu médico

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César é o nome do diabetólogo que me acompanha desde os meus 16 anos (hoje tenho 37). Cheguei ao consultório do Dr. César numa situação de saúde física e psicológica bastante delicada: diagnóstico de diabetes tipo 1 desde os 9 anos, com catarata desde os 10 anos, naquele momento com 30% da visão, e com o controle glicêmico precário.

Depois de passar por um primeiro médico que me olhou menina de 9 anos e me disse que eu estava morrendo, fui acompanhada por outro que me tranquilizava dizendo, sem pedir exames, que eu estava muito bem (embora eu não estivesse). Dos 9 aos 16 anos a catarata progrediu rapidamente, e aquele endocrinologista que me acompanhara por 7 anos, me olhando adolescente quase cega e interrompida em sua vida escolar (perdi o ano porque não enxergava), me bolinou a portas fechadas em sua sala.

Assim cheguei ao consultório do Dr. César que, reestruturando a tríade do meu autocuidado (insulina, alimentação e exercícios), e me encaminhando para um atendimento psicológico, em 3 meses me ajudou a estabilizar a glicemia para que eu pudesse fazer a cirurgia da catarata, e retomar minha vida escolar no ano seguinte, com a visão recuperada.

Apesar do Dr. César ser bastante acessível, sempre o enxerguei como uma espécie de herói – o homem que proporcionou o retorno da minha visão e do meu autorespeito, razão pela qual o posicionei em um patamar inalcançável. Em alguns momentos, entretanto, sentia que era necessário discutir algumas orientações que recebia, pois às vezes pareciam não se adequar às minhas particularidades. Todavia, como discutir opções terapêuticas com alguém tão superior a mim?

A solução que encontrei foi o estudo autodidata do diabetes, a partir de textos teóricos de sociedades médicas, e de todo tipo de informe sobre o tratamento da doença, pois julgava que a minha experiência prática não seria suficiente para discutir com meu diabetólogo, e que apenas o conhecimento técnico me daria condições de conversar sobre a minha saúde com o Dr. César.

Jamais imaginei que as formas encontradas nesses 28 anos de diabetes para superar minhas dificuldades pessoais no autocuidado poderiam ser consideradas como saberes. Só descobri que enquanto paciente eu também sou dotada de saberes, saberes práticos, depois de ler o livro "Entre a ciência e a experiência. Uma cartografia do autocuidado no diabetes", do médico, professor e editor Antonio Pithon Cyrino.

10001524_10152015701387361_1386959485_n.jpgO livro trata de uma pesquisa realizada com diabéticos tipo 2, mas fala de algo comum a todos os tipos (humanos): o desenvolvimento de saberes próprios, e como esse saberes podem nos auxiliar no cuidado diário com a saúde, como podemos nos apropriar do cuidado em diabetes de forma adaptada às nossas particularidades. Trata, como o próprio autor fala, do nosso "empoderamento", em oposição à obediência a diretrizes que, embora válidas para a regra geral, no caso particular nem sempre se coadunam com a nossa vida.

Antonio Pithon Cyrino mostra que nós, portadores de diabetes, não somos uma massa amorfa doente, e que apesar de nossos traços comuns ainda temos nossa individualidade garantida perante o olhar médico mais humanizado.

O livro é ainda uma crítica à educação bancária (na definição de Paulo Freire), em que os saberes são depositados no paciente, e não compartilhados entre ele e o médico. Acho que essa é exatamente a visão de uma pessoa que recebe informações do cuidador quando este não pergunta sobre a sua vida prática. É o que está por trás da fala "ele diz para eu fazer isso porque não é ele que vai fazer", pensamento que já foi meu, e que muitas vezes ouço de colegas portadores de diabetes.

Pelo olhar médico menos humanizado, originário da tradicional formação acadêmica que posiciona o médico em relação de superioridade, distante do paciente, o foco não é a pessoa, mas a doença. E refletindo como um espelho essa distância imposta na separação de lados entre o que sabe tudo e o que nada sabe, o paciente acaba por julgar que nada tem para contribuir.

Esta visão, no entanto, além de desumana, por não enxergar a pessoa que já existia muito antes da doença, está equivocada, por desconsiderar que quem mais sabe sobre o seu corpo é o próprio paciente.

Na teoria é sempre mais simples, mas cada um tem que descobrir como implementar esses ensinamentos na prática individual. E eu nem sabia que isso era importante. Estou tomando consciência de que desenvolvi muitas práticas pensando nisso, em como transformar o conhecimento do cuidado num cuidado efetivo, sem me dar conta disso.

A consulta é um encontro de especialistas – da área técnica, o médico, e da área prática, o paciente. Nós pacientes temos muitos saberes desenvolvidos, e a noção ou ausência de noção sobre esses nossos saberes influencia o relacionamento e a comunicação com nossos médicos e cuidadores.

Num certo trecho do livro de Antonio Pithon Cyrino (fls. 122), existe a seguinte passagem, que demonstra a importância do compartilhamento de saberes técnicos e práticos:

"[E o que é que foi mais importante na atividade de grupo?]

Eu acho assim…. O aprender né? A liberdade né? De expressão…. Que a gente teve com os profissionais. Eu achei que era muito importante. Por que aí era igual, igual, né?

[Como assim?]

Eles consideravam a gente igual eles. Tanto o médico como a psicóloga. Considerou a gente como amigos e não como pacientes. E foi aquela troca de experiência. Pra mim foi muito bom."

Ainda não consigo chamar meu diabetólogo, meu cuidador há 21 anos, a pessoa que me devolveu a visão e a dignidade no trato da saúde, apenas por "César" – por limitações minhas, e não dele – mas consigo compartilhar informações com ele, e ter a consciência de que essa troca é extremamente benéfica para o meu autocuidado. E agora posso dizer também que a cada consulta existe uma troca de saberes entre nós!

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Observação 1:

SOBRE A EDUCAÇÃO BANCÁRIA: "Na concepção bancária (burguesa), o educador é o que sabe e os educandos, os que não sabem; o educador é o que pensa e os educandos, os pensados; o educador é o que diz a palavra e os educandos, os que escutam docilmente; o educador é o que opta e prescreve sua opção e os educandos, os que seguem a prescrição; o educador escolhe o conteúdo programático e os educandos jamais são ouvidos nessa escolha e se acomodam a ela; o educador identifica a autoridade funcional, que lhe compete, com a autoridade do saber, que se antagoniza com a liberdade dos educandos, pois os educandos devem se adaptar às determinações do educador; e, finalmente, o educador é o sujeito do processo, enquanto os educandos são meros objetos"

"A educação bancária tem por finalidade manter a divisão entre os que sabem e os que não sabem, entre os oprimidos e opressores. Ela nega a dialogicidade, ao passo que a educação problematizadora funda-se justamente na relação dialógico-dialética entre educador e educando; ambos aprendem juntos". Paulo Freire define como "bancária" a pedagogia burguesa, comparando os educandos a meros depositários de uma bagagem de conhecimentos que deve ser assimilada sem discussão. Paradoxalmente, esta modalidade de educação teria como objetivo não equalizar os conhecimentos entre educador e educando, mas sim "manter a divisão entre os que sabem e os que não sabem, entre os oprimidos e os opressores". O educador é necessariamente um opressor.

"A partir dessa sua prática, criou o método, que o tornaria conhecido no mundo, fundado no princípio de que o processo educacional deve partir da realidade que cerca o educando. Não basta saber ler que 'Éva viu a uva', diz ele. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho." 

Rejane Guedes Pedroza

Observação 2:

A propósito do tema comunicação paciente-cuidador, segue link do texto do professor e médico sanitarista Ricardo Rodrigues Teixeira "O acolhimento num serviço de saúde entendido como uma rede de conversações", para pensarmos em formas de reconhecer e partilhar nossas dificuldades (campos problemáticos) e saberes referentes ao cuidado-de-si com a equipe de saúde (Antonio Pithon Cyrino).

Como diz com maestria Ricardo Teixeira "Da perspectiva do processo de construção da cidadania e do espírito democrático entre nós, como nunca, parece ser o momento de fazer avançar esse processo nos espaços micropolíticos, como são os espaços dos serviços, contribuindo para que a essência de suas práticas seja a realização da democracia viva em ato".

Leia também entrevista concedida por Ricardo Teixeira ao Instituto Humanitas Unisinos, da qual destaco o seguinte trecho:

"IHU On-Line – Como o senhor define o relacionamento entre os profissionais da saúde e seus pacientes dentro da lógica da medicalização da saúde e da vida?

Ricardo Teixeira – No encontro paciente/trabalhador da saúde esse mesmo tema da hierarquização pode se recolocar. O usuário ou paciente não é alguém destituído de saberes sobre questões de saúde. E o profissional de saúde, seja ele qual for, também possui um saber. É claro que na relação paciente/trabalhador da saúde essa questão tende a se apresentar, num certo sentido, a priori hierarquizada. No sentido de que há uma parte que procura o auxílio da outra parte, supondo, portanto, que seu saber é insuficiente para lidar com a adversidade que está enfrentando. Digamos que ao procurar ajuda, o paciente tem uma expectativa de que o saber do outro seja hierarquicamente superior ao seu. No entanto, não podemos esquecer que o paciente, até o fim desse processo, é portador de um conhecimento que só ele pode ter. Esse é um tipo de conhecimento que não está formalizado no plano da cognição, plano onde ela [a cognição] é separada dos afetos, de um conhecimento intensamente afetivo a respeito da sua própria situação. Mas quem detém o critério, o valor último de todo o conhecimento que será mobilizado nessa relação, é o paciente. Essa é a riqueza da clínica. O saber médico se formaliza muitas vezes no laboratório, na bancada científica. Quando um patologista, no laboratório, examina um tecido e diz que ali há uma lesão, que é uma patologia, a rigor, não há nada no que ele está vendo que diga para ele, em si mesmo, que aquilo é patológico. Ele só pode falar que algo é patológico porque algum clínico que teve contato com o paciente, na beira do leito ou no ambulatório, disse para ele que alguém que é o dono daquele tecido sofria. Este conhecimento que informa que aquele tecido é patológico vem de um paciente que sabe que sofre. Que esse conhecimento permaneça sempre hierarquicamente superior na relação paciente/trabalhador da saúde, pode funcionar como um pequeno “antídoto” contra a medicalização."