A condição pecaminosa, comum e banal de sobreviver em tempos difíceis.
Por milênios o assassinato era a condição de viver mais um dia, para amar a prole, persistir na existência e vivenciar o bem.
Podemos ser os filhos bastardos, descendentes de tribos de sequestradores de mulheres. Em partes variadas, a solidariedade e o saque sempre existiram. Mas a abundância e a segurança os tornaram – o saque, o estupro e o assassinato – expedientes desnecessários e condenáveis. Mas não o tempo todo, nem em todo o lugar. Havia o outro bando, a outra tribo e depois as outras nações. Existiam as mulheres, as armas e os recursos naturais escassos que nos incitavam (e ainda nos levam) a matar. Tomar seu filho nos braços, niná-lo e destruir os inimigos fazia parte de um mesmo empreendimento: viver a vida.
Entretanto, quando abundância e a cordialidade se tornaram possíveis, compartilhar e coexistir passaram a ser os signos da razão e da justiça. O bem passou a ser possível, mas somente ao custo de que o erro e o pecado viessem a rasgar a experiência de ser.
Desde então, compor com o possível e tentar ajustar o timão da vontade ao leme das circunstâncias, constituiu a mitologia humana por onde quer que humanos existissem. Por uma perversão arrogante, fomos além. Nos imaginamos a parte da natureza. Acreditamos que os deuses, ou deus, nos deram a solidez do livre arbitrar, acima das circunstancias. Podemos e vamos ser razoáveis, ainda que nunca tenhamos sido e mesmo que não possamos explicar a razão de termos que ter “a” razão.
Desde então pensamos a nós mesmos como deuses extraviados. Aqueles que escolheram entre formas opostas do bem. A justiça laboriosa e metódica, associada a norma, de um lado. O conforto da transgressão, sedutor e, supostamente, fácil de outro. Para uns a redenção e o paraíso eteno… Para outros o inferno e a danação eterna. Uma bela fábula.
Construímos uma arquitetura de fundações racionalizadas, oriundas das vozes de um demônio no ouvido de Sócrates, ou no trovão de Deus e do fogo falante nas mentes dos patriarcas hebreus. Essa mitologia é muito mais antiga. Vinda de mitos arcaicos, ela foi muitas vezes recontada e reelaborada. É uma forma de fábula moral que vem do caos, para dar sentido ao caos.
E então, pelo mito, pela religião, pela filosofia, pela ciência e pela a arte, a mistificação permanece. Os arrogantes primatas sencientes precisam, simbolicamente, dar objetividade a sua fábula subjetiva.
Os loucos e os presidiários, os leprosos e os viciados, os doentes e os velhos, os órfãos e os violados, em resumo, todos em algum momento, somos inocentes penitentes. Por algo que não poderíamos evitar, mas que por desígnios demoníacos ou divinos, calhou de acontecer, devemos pagar o preço e o custo da justiça.