A POÉTICA DO FUTEBOL

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A tristeza de David Luis – foto de Gabriel Bouyes/ AFP

 

Mais uma vez o Brasil mostra a todos o encanto do futebol, sua magia,aquilo que faz deste esporte mais popular em todo o mundo. E talvez sua magia esteja em sua mestiçagem. Se o futebol é, ao lado do carnaval, nossa expressão cultural mais forte, talvez seja porque, mestiço como nós brasileiros, misture num bom caldo esporte e arte, campos da atividade humana que estão muitas vezes separados.

Sabemos: o futebol é também uma arte.

Mas, o que faz do futebol uma arte?

Sem dúvida há uma estética nos movimentos dos corpos dos jogadores. Uma ginga, um molejo.Uma coordenação  perfeita dos membros que faz com que – quando vejamos o corpo de um Pelé, de um Ronaldo, de  um Neymar ou de um Garrincha, voando nos ares, brincando com a bola, correndo no campo – pensemos mais em uma dança que um atletismo. Os grandes jogadores apresentam a experiência de um corpo de tal forma coordenado, que cada movimento encontra sua perfeição e sua beleza de modo espontâneo e não planejado ou coreografado. Uma dança sim, mas uma dança de contato e improvisação.

Essa improvisação nos leva a pensar em uma outra característica artística do futebol: a improvisação coletiva que expressa uma potência criativa inigualável. Assistindo a uma partida de futebol vemos a criatividade do corpo que responde imediatamente aos estimulos, propondo novas composições e levando o coletivo que joga a reinventar-se a cada instante. Os grandes movimentos do futebol são manifestações dessa criatividade coletiva que não deixa de aparecer singularizada mas que não pode jamais ser individual. Aqui o time é uma orquestra e o futebol se aproxima da música; e se fosse música o futebol seria o jazz.

Há ainda, e sobretudo, uma poética do futebol. Esta poética está relacionada à qualidade dos roteiros, o encadiamento dos acontecimentos, a narrativa que se constrói ali em ato. Nenhum outro  esporte expressa a experiência do trágico que compõe a nossa vida. Nenhum esporte é mais imprevisivel. Nenhum outro esporte expressa tão fortemente a falta de sentido de alguns acontecimentos. Nenhum nos coloca frente a frente, de forma tão  poderosa, com nossa incapacidade de explicitar e nossa necessidade de compreender. O futebol é a nossa expressão trágica, como foi para os gregos, o teatro.

E é por ser assim tão aparentado a uma tragédia grega que, no futebol, os heróis frequentemente quebram, falham, desmoronam. Os heróis do futebol como os heróis das tragédias gregas, são humanos. E em sua humanidade estão submetidos a forças muito maiores do que seus pequenos corpos individuados.

Quando vemos Neymar jogar, vemos um menino que brinca, mas vemos também a força e a suavidade do vento. Quando vemos David jogar, vemos um homem de cabelos rebeldes, mas vemos também a energia do fogo. Quando vemos Thiago Silva jogar, vemos sua beleza e serenidade, mas vemos também o firme poder de uma montanha.

Uma força – seja ela a do vento, a do fogo ou da montanha – pode sempre encontrar sua força maior que a supere ou a faça quebrar. O vento pode ser impedido de soprar por uma parede muito grande; o fogo pode ser apagado pela terra; a montanha pode ser derrubada por uma tempestade.

Os heróis do futebol são esses mortais a nos lembrar que somos todos mortais, falíveis; e que nossos sonho, como tudo o mais em nossa vida tem um fim.

É por isso que depois de uma derrota triste como foi a do jogo entre o Brasil e Alemanha, podemos olhar para os nossos heróis e amá-los ainda mais. Por suportarem por todos nós, em seus pequenos corpos de homens, todas as nossas derrotas, tudo o que não conseguimos fazer. Por suportar enfim, a maior de todas as derrotas: não conseguimos construir um país e um mundo justos, onde qualquer um possa existir com dignidade e liberdade. 

Nada poderia emocionar mais do que as palavras de David Luiz após o jogo. Com os olhos úmidos e a expressão de dor, nosso herói nos  nos dizia: "Eu só queria fazer meu povo sorrir". Sim, David. É isso que muitos de nós queremos. Trazer alegria ao mundo: participar da construção de um mundo comum que possa se tornar melhor por nossas ações.

É como se a goleada nos mostrasse que estamos ainda muito longe desse mundo. E que temos que enfrentar forças muito poderosas e muito organizadas. E que seremos uma e outra vez derrotados. Mas que nos levantaremos para continuar lutando.

Como agentes e pensantes, todos nós – jogadores, artistas, professores, operários, estudantes, mães, amigos, crianças brincantes – continuaremos lutando, não para sermos vencedores, mas para que possamos sorrir juntos. E essa potência da alegria nunca FIFA nenhuma poderá controlar ou cooptar.

Não posso deixar de lembrar aqui um outro herói que está sendo derrotado junto com todos nós: Fábio Hideki, estudante e servidor público, está preso por, em suas palavras, lutar politicamente "por um mundo melhor, justo e sem desumanidade". (https://liberdadeparahideki.org/)

Elizabeth Araújo Lima é professora da USP e está engajada na luta por um ensino público, gratuito e de qualidade

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Fim do jogo – foto de Pedro Ugarte AFP