Comentário sobre o texto: ESPIRITUALIDADE NA EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE

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Este texto, de autoria de Eymard Mourão Vasconcelos, versa sobre as resistências e possibilidades na consideração do tema da espiritualidade em suas relações com a educação em saúde.
Inicialmente aponta o preconceito científico, a partir da ótica newtoniana-cartesiana, frente a possibilidade de se conjugar dimensões espirituais e produção educativa e científica, ainda que considere que ‘o trabalho em saúde sempre esteve ligado às práticas religiosas’. Refere, contudo, que o avanço da crítica ao paradigma da racionalidade científica no século XX, incluindo a insatisfação ao modelo da biomedicina, o aumento dos movimentos religiosos no final do mesmo século e o avanço das ciências da religião, promovendo uma compreensão do fenômeno espiritual desafogada das tradições religiosas especificas, de forma a não dogmatizar a realidade em torno do fenômeno espiritual, têm sido contribuições para a produção de uma linguagem social comum no que tange à  relação entre espiritualidade e saúde.
Esta nova compreensão desta relação rechaça a visão da educação como processo de repasse de informação, ao considerar processos inconscientes como dimensão dos processos pedagógicos e terapêuticos. Dimensão em que se assentam ‘valores, motivações profundas e sentidos últimos da existência individual e coletiva’. Parte-se, então, da compreensão de que a educação popular, ao considerar as dimensões fenomênica e concreta na relação homem mundo, pode contribuir significativamente para o acolhimento e promoção da mística da espiritualidade na produção da saúde.
A educação popular em saúde, no Brasil, nasce, historicamente, na década de 1970, com a participação de profissionais da saúde na experiência de práticas educativas populares, fazendo frente ao tradicional movimento da educação em saúde, formatado por um pensamento ligado aos anseios de modernização do país da elite sócio-econômica, desdobrando-se em práticas alienadas da realidade e do vivido da população economicamente subalterna. Neste sentido, buscou-se uma compreensão mais integral de saúde, mais solidária com o movimento das classes populares, criando-se a Rede de Educação Popular em Saúde e assumindo-se o caráter micro e macro político da educação em saúde.
Eymard afirma que educação popular é o saber que orienta a ‘ação pedagógica voltada para a apuração do sentir/pensar/agir dos setores subalternos para a construção de uma sociedade fundada na solidariedade, justiça e participação de todos’. Origina-se na resistência das igrejas cristãs frente a opressão social da ditadura militar, nos ídos da década de 70. Tem no educador Paulo Freire um de seus ícones. Neste momento do texto, percebo a falta de referência a contribuição da cultura afro-brasileira ao movimento da educação popular.
Na educação popular ‘vai-se … aprendendo a manejar, de forma equilibrada, a relação entre a razão, a emoção e a intuição na estruturação do ato terapêutico’. Uma de suas mais importantes características é o forte sentimento religioso, como ‘forma particular de expressar os caminhos que estas classes (populares) escolhem para enfrentar suas dificuldades no cotidiano… É um instrumento de resistência à lógica da modernidade que ampliou a desigualdade e a injustiça. Uma estratégia de sobrevivência, em que a busca do sobrenatural tem a ver com a solução de problemas imediatos e cruciais e não com o investimento da vida após a morte’. Não se trata, então, de alienação do mundo, mas de percebê-lo de uma certa forma, ligada ao desenvolvimento de uma subjetividade que legitime os anseios individuais e coletivos das classes populares. Por consequência, não está vinculada às diretrizes de pensamento de nenhuma concepção hierárquica de religiosidade, mais se alinhando ao conceito de espiritualidade que de alguma religiosidade específica, por ser aquele um ‘conceito que ressalta principalmente a dinâmica de aproximação com o eu profundo, que não corresponde necessariamente aos caminhos padronizados difundidos pelas hierarquias religiosas tradicionais’.
Por fim, gostaria de ressaltar o que me parece um entendimento, no texto, quanto ao conceito de conscientização, diferentemente da compreensão em Freire sobre este fenômeno:  o mesmo, no texto, é assemelhado à ‘tomada de consciência, referindo-se à apropriação da capacidade da consciência de conhecer os direitos e deveres que todos devem ter (…)’. Mais adiante, ainda no texto, o autor, citando Rolnik, comenta que na Europa ocorre ‘um máximo de reconhecimento do outro em sua condição de cidadania e um mínimo acolhimento do outro em sua totalidade’, o que demonstra a insuficiência do processo de conscientização para a humanização das relações. Este estado de coisas não corresponde à compreensão do desenvolvimento, nem das consequências do processo de conscientização da forma como este é compreendido no pensamento freireano. Neste, a conscientização é um processo longitudinal, dinâmico e complexo de implicação da experiência no enfrentamento conjunto, coletivo de uma determinada situação de opressão, processo gerador de compromisso político e humanitário, práxis éticopolítico-pedagógica coletiva no cotidiano, emaranhada de ‘dinâmicas reflexivas feitas de forma afetiva’, como menciona Eymard se referindo à educação popular. Nesta perspectiva, a conscientização é concebida como um processo de luta contra iniquidades sociais, não apenas de tomada de consciência crítica delas, o que pode acontecer apenas por atos cognitivo-linguísticos. Conscientização, assim, exige linguagem não verbal.